segunda-feira, 21 de maio de 2018

Da teoria e do método de escrever

Uma moça me escreveu. Estava lutando para ser admitida no “País dos Saberes”. Estava escrevendo uma tese. Tinha de provar o seu domínio da gramática da ciência. Sua tese era sobre as estórias infantis que escrevi. Guiada pelo guardião dos saberes acadêmicos, o seu orientador, enviou-me um questionário preparado segundo as regras acadêmicas.
Primeira pergunta:
De que teoria o senhor lança mão para escrever as suas estórias?”
Segunda pergunta:
Que método o senhor usa para escrever suas estórias?”
Pobrezinha. Minhas respostas não a ajudaram. Nem lanço mão de teoria nem uso método para escrever minhas coisas. Lançaria mão de teoria e usaria método se eu estivesse procurando. Mas “eu não procuro. Eu encontro”.
Para os soldados que marcham em parada, a coreografia do grupo de dança O Corpo é anarquia. A marcha dos soldados segue a lógica da causalidade. “Ordinário! Marche!” Uma coisa depois da outra, na ordem devida, segundo a lógica da sucessão e da contiguidade.
Mas a dança do corpo segue a lógica do amor. Lógica do amor? Amor tem lógica? Amor não é só loucura? Sentimento puro, incapaz de conhecer? Não será por isso que ele foi excluído do “País dos Saberes”? Ah! Como os pedagogos têm medo da palavra amor! Se a usassem, seriam apelidados de românticos! Mas quem tem respeito intelectual por um romântico? Na melhor das hipóteses, ele escreverá poemas e comporá canções. Mas de um romântico não se pode esperar conhecimento. Apenas ejaculações emotivas. E não há nada a que os pedagogos mais aspirem que ser admitidos no “País dos Saberes”. Por isso sonham com a elevação da educação à dignidade de ciência, para poder ser admitidos nos círculos da ciência.
Haverá lógica em Baco? Em Lewis Carroll? Em Fernando Pessoa? Lembro-me de um conselho dado pelo professor Ubiratan d’Ambrosio, matemático. Num programa de TV, perguntado por alguém sobre o que fazer para aprender lógica, ele respondeu: “Leia poesia”.
Existe uma lógica na marcha dos soldados. A lógica da marcha dos soldados nos coloca dentro das regras do mundo da consciência, as coisas que acontecem sobre a superfície do rio. Mas existe também uma lógica na dança. Ela nos faz mergulhar nas profundezas do corpo, aquilo a que a psicanálise chama pelo nome de inconsciente. “Há sempre alguma loucura no amor”, dizia Zaratustra. “Mas há também sempre alguma razão na loucura.” Na dança das associações livres, as ideias se ligam umas às outras por amor. “Les mots font l’amour”, disse André Breton. E o amor não conhece distâncias. Toda metáfora é um salto sobre o abismo.
Rubem Alves, in Variações sobre o prazer

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