segunda-feira, 21 de maio de 2018

Chegando ao mundo


Antônio tinha habilidade pra tanta coisa que ficava difícil escolher uma só. Ninguém assobiava e chupava cana ao mesmo tempo melhor que ele, por exemplo.
Mas isso era coisa besta.
Podia decorar qualquer número, desde que não ultrapassasse os 28.730 algarismos, e depois era capaz de repeti-lo inteiro, na ordem que lhe fosse encomendada, na língua escolhida, só não em francês, por ser um pouco mais trabalhoso.
Mas isso era coisa fraca.
Tinha extrema facilidade de se transformar em muitos, apenas quando fosse necessário, mas evitava fazê-lo senão nunca mais ia ter sossego, ô povinho pra pedir favor era aquele.
Mas isso era coisa pouca.
Podia visitar o passado e o futuro, se quisesse, já que era amigo do tempo, e só não tinha visitado ainda por nunca ter julgado oportuno.
Mas isso era coisa sem utilidade.
E foi tentando descobrir pelo caminho qual seria a melhor maneira de atrair a atenção do povo, e foi pensando, pensando, pensando, e nem teve tempo de imaginar que Karina só fez chorar naqueles dias todos em que o pessoal da prefeitura ficou sem tomar café e que dona Nazaré rezou baixinho, como se deve rezar por um filho que se dana pelo mundo porque chegou a sua hora.

Em chegando no mundo, Antônio foi direto ao shopping comprar um paletó, de preferência branco.
Shopping era um edifício onde moravam compras, em vez de gente.
Ficou incrível com aquelas luzinhas todas, elas deviam ter treinado muito pra toda vez acender uma, justo quando a outra apagava.
Tentou decorar na cabeça cada novidade que via pra contar depois, quando voltasse pra Nordestina, mas era tanta da coisa que Nossa Senhora.
Admirou-se muito com a quantidade de ser humano e com a falta de cachorro vira-lata. Com o mar não se admirou muito não, por bem dizer achou até menor do que tinha imaginado. Gostou foi do vento na cara. Reparou demais na giganteza das sombras e brincou de tapete com elas.
Se fosse o caso de ficar por ali comentando o que via, era só botar um inclusive no final da frase, engatar um assunto no outro, e teria conversa pro resto da vida.
Como ele tinha mais o que fazer, não era o caso.
Antônio viu de tudo no mundo.
Viu gente que sabia fazer calçada virar casa, ferida virar dinheiro, montanha virar cidade, patife virar mandante, lixo virar banquete. E começou a desconfiar que estava por dar a Karina um presente meio desarrumado. O que era que ela ia fazer com o mundo daquele jeito? Só ia prestar caso Antônio ajeitasse tudo primeiro, mas aí o negócio complicava. Uma coisa era mudar o mundo de lugar, outra era mudá-lo completamente.
Foi então que juntou uma ideia com outra, fez umas contas de cabeça, dividiu por dois, e chegou a um resultado que o deixou satisfeito.
Adriana Falcão, in A máquina

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