segunda-feira, 23 de abril de 2018

Regra do mundo é muito dividida

Galopando junto com o Sesfrêdo, larguei aquele lugar do Burití das Três Fileiras. Pesares que me desenrolavam. E então eu decifrei meu arranque de ter querido vir com o Sesfrêdo. Que ele, se sabia, tinha deixado, fazia muitos anos, em terras do Jequitinhonha, uma moça que apaixonava, e que era a mocinha de cabelos louros. ― Sesfrêdo, me conta, me fala nesse acontecer... ― nem bem cem braças andadas eu já pedia a ele. Era como se eu tivesse de caçar emprestada uma sombra de um amor.
E você não volta para lá, Sesfrêdo? Você aguenta o existir? ― perguntei. ― Guardo isso, para às vezes ter saudade. Berimbau! Saudade, só... ― e ele alargou as ventas, de tanto riso. Vi que a estória da moça era falsa. De inventar pouco se ganha. Regra do mundo é muito dividida. O Sesfrêdo comia muito. E sabia assoviar seguido, copiando o de muitos pássaros.
Ao viável, eu tinha de atravessar as tantas terras e municípios, jogamos uma viagem por este Norte, meia geral. Assim conheço as províncias do Estado, não há onde eu não tenha aparecido. A que viemos: por Extrema de Santa Maria ― Barreiro Claro ― Cabeça de Negro ― Córrego Pedra do Gervásio ― Acarí ― Vieira ― e Fundo ― buscando jeito de encostar no de São Francisco. Novidade não houve. Passamos, numa barca. Só sempre bater para o nascente, direitamente em cima de Tremedal, chamada hoje Monte-Azul. Sabíamos: um pessoal nosso perpassava por lá, na Jaíba, até à Serra Branca, brabas terras vazias do Rio Verde-Grande. De madrugada, acordamos em sua janela um velhozinho, dono de um bananal. O velhozinho era amigo, executou o recado. Daí a cinco madrugadas, retornamos. Era para vir alguém, quem veio foi João Goanhá, próprio. E as descrições que deu foram de todas as piores. Sô Candelário? Morto em tiroteio de combate, metralhadoras tinham serrado o corpo dele, de esguêlha, por riba da cintura. O Alípio, preso, levado para a cadeia de algum lugar. Titão Passos? Ah, perseguido por uma soldadesca, tivera de se escapar para a Bahia, pela proteção do Coronel Horácio de Matos. Só mesmo João Goanhá era quem ainda estava. Comandava saldo de uns homens, os poucos. Mas coragem e munição não faltavam. ― E os Judas? ― perguntei, com triste raciocínio! por que era que os soldados não deixavam a gente em paz, mas com aqueles não terçavam? ― Se diz que eles têm uma proteção preta... ― João Goanhá me esclareceu! ― O Hermógenes fez o pauto. E o demônio rabudo quem pune por ele... Nisso todos acreditavam. Pela fraqueza do meu medo e pela força do meu ódio, acho que eu fui o primeiro que cri.
Ainda disse João Goanhá que estávamos em brevidade. Porque ele sabia que os Judas, reforçados, tinham resolvido passar o Rio em dois lugares, e marcharem em cima de Medeiro Vaz, para acabar com ele de uma vez, no país de lá. Onde era que o perigo, Medeiro Vaz precisava de nós.
Mas não pudemos. Mal a gente se tocou, para a Cachoeira do Salto, e esbarramos com tropa de soldados ― tenente Plínio. Foi fogo. Fugimos. Fogo no Jacaré Grande ― tenente Rosalvo. Fogo no Jatobá Torto ― sargento Leandro. Volteamos. Sobre aí, me senti pior de sorte que uma pulga entre dois dedos. No formato da forma, eu não era o valente nem mencionado medroso. Eu era um homem restante trivial. A verdade que diga, eu achava que não tinha nascido para aquilo, de ser sempre jagunço não gostava. Como é, então, que um se repinta e se sarrafa? Tudo sobrevém. Acho, acho, é do influimento comum, e do tempo de todos. Tanto um prazo de travessia marcada, sazão, como os meses de seca e os de chuva. Será? Medida de muitos outros igualasse com a minha, esses também não sentindo e não pensando. Se não, por que era que eram aqueles aprontados versos ― que a gente cantava, tanto toda-a-vida, indo em bando por estradas jornadas, à alegria fingida no coração?
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

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