domingo, 22 de abril de 2018

E eles viveram felizes para sempre (2)

[…] Mas isso também é simplificar demais. Primeiro, porque baseia sua avaliação otimista em uma amostra muito pequena de anos. A maioria dos humanos só começou a colher os frutos da medicina moderna em 1850, e a drástica redução na mortalidade infantil é um fenômeno do século XX. A fome em massa continuou a acometer grande parte da humanidade até meados do século XX. Durante o Grande Salto para a Frente, de 1958 a 1961 na China comunista, algo entre 10 e 50 milhões de seres humanos morreram de fome. As guerras internacionais só se tornaram raras após 1945, em grande parte graças à nova ameaça de aniquilação nuclear. Portanto, embora as últimas décadas tenham sido uma era de ouro sem precedentes para a humanidade, é cedo demais para saber se isso representa uma mudança fundamental nas correntes da história ou uma onda efêmera de boa sorte. Ao julgar a modernidade, é demasiado tentador adotar o ponto de vista de um cidadão de classe média do Ocidente do século XXI. Não devemos nos esquecer do ponto de vista do minerador galês, do chinês viciado em ópio ou do aborígene tasmaniano do século XIX. Truganini não é menos importante do que Homer Simpson.
Em segundo lugar, até mesmo a breve era de ouro do último meio século pode ter espalhado as sementes de catástrofe futura. Nas últimas décadas, temos perturbado o equilíbrio ecológico do nosso planeta de muitas maneiras, provavelmente com consequências terríveis. Há muitos indícios de que estamos destruindo as bases da prosperidade humana em uma orgia de consumo desenfreado.
Por fim, só podemos ficar orgulhosos das conquistas sem precedentes dos sapiens modernos se ignorarmos completamente o destino de todos os outros animais. Grande parte da alardeada riqueza material que nos protege de fome e doenças foi acumulada à custa de macacos de laboratório, vacas leiteiras e frangos criados em linha de produção. Nos últimos dois séculos, dezenas de bilhões deles foram submetidos a um regime de exploração industrial cuja crueldade não tem precedentes nos anais do planeta Terra. Se admitirmos apenas um décimo do que os ativistas pelos direitos dos animais estão reivindicando, a agricultura moderna poderia muito bem ser o maior crime da história. Ao avaliar a felicidade global, é um equívoco considerar apenas a felicidade das classes superiores, dos europeus, ou dos homens. Talvez também seja um equívoco considerar apenas a felicidade dos humanos.
Yuval Noah Harrari, in Sapiens: uma breve história da humanidade

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