segunda-feira, 23 de abril de 2018

As antigas saudações populares

No velho sertão nordestino, que as rodovias modificaram pela incessante aproximação com o litoral, até o Ano do Centenário (1922), conservavam-se, quase imutáveis, as linhas-mestras da sociedade setecentista. Chefes políticos, vigários, professores locais mantinham, pelo exemplo natural da vocação obstinada, a fisionomia cultural de outrora, fiéis à herança poderosa do regímen antigo no qual haviam nascido.
Regime, rejume, era uma norma inalterável, forma de vida estável e natural. Vivendo, há meio século, nessa região do Rio Grande do Norte e da Paraíba, justamente no sertão mais típico e severo, sertão de pedra, o oeste norte-rio-grandense e as ribeiras paraibanas do Rio do Peixe e do Piancó, sou uma testemunha, uma memória sobrevivente desse ciclo que desapareceu quase por completo.
Essas reminiscências constituem o fundamento de estudos que a biblioteca e a viagem completaram no plano da atualização e do confronto.
Um desses motivos de pesquisa tem sido a saudação, a cortesia do sertão velho, aos visitantes, hóspedes, familiares.
A lição etnográfica é que a primeira saudação humana seria pela voz tranquilizadora ou aliciante. Nasceram as fórmulas da polidez milenar, troca de palavras numa convenção insubstituível. Alusão à presença física, à saúde, ao perpassar do tempo. Ainda vivem essas perguntas, estabelecendo a confiança pelo interesse cordial. É o modo internacional de saudar.
Pelo litoral atlântico onde vivia o indígena tupi, os cronistas registraram a troca ritual das palavras indispensáveis, rápido comento pela vitória da jornada até a aldeia fraternal.
ERE-UI PE? Vieste então? PA-AIUT , sim, vim. É o nosso íntimo: – Então? Por aqui? – É verdade, estou por aqui! Hans Staden saúda Cunhambebe: – Vives tu ainda? – O grande soberano selvagem responde apenas: – Sim, vivo ainda! – No mundo caraíba nas cabeceiras do Xingu, Karl von den Steinen fixou o cerimonial: – Ama: tu! Úra: eu! – Nada mais. Eu e tu estamos diante um do outro, individualizados, reais, autênticos. Vamos viver juntos como amigos. Entretermo-nos. Para que maiores circunlóquios?
Antes da palavra expressiva haveria o primeiro gesto, ainda contemporâneo, de mostrar as mãos, uma só mão no mínimo, visivelmente sem armas, agitada na homenagem ao advena. E deste àquele. Desarmados, na confiança cordial. Mudamos milhares de coisas, mas essa saudação ficou.
Andei uns tempos indagando sobre o aperto de mão (Superstições e costumes, ed. Antunes, Rio de Janeiro, 1958). Não havia no Brasil ameraba. É uma presença europeia. Em 1884 os bacairis “mansos” do Mato Grosso não compreendiam a significação da mão estendida.
O mesmo ocorrera na África Ocidental e Oriental. O preto não sabia apertar a mão como um cumprimento. Presentemente é um índice de aculturação. A saudação normal do brasiliense consistia nas frases: – Vieste? Vim! Eu! Tu! Eu bom! Eu amigo! Nenhum gesto acompanhava. Havia nalgumas malocas a saudação lacrimosa, de uso vasto e velho fora do Brasil. Seguia-se, em qualquer dos casos, a entrega de alimentos e das ofertas do estrangeiro. Receber o hóspede, chorando, era um processo da cordialidade feminina. O estrangeiro devia chorar também.
O sertão, mesmo do século XIX e primeiras décadas do XX, conheceu o aperto de mão para pessoas de sociedade, gente letrada, de importância. O sertanejo antigo não apertava a mão. Falava saudando. Ouvia, sorrindo, a resposta. Ainda hoje não é comum entre populares. Batem no ombro, nas costas, no deltoide. Fazem ar de riso. Mesmo o abraço é um toque de mão num ou em ambos os ombros. Bater no ombro é símbolo clássico de intimidade. Local de cerimônias fidalgas e sagradas. Andam de mão no ombro, amigos.
A saudação velha era essencialmente a palavra e não o gesto. Assim vi, há cinquenta anos passados. Identicamente entre o povo português, lavradores, gente do interior, fiel às regras de outrora.
No alpendre da fazenda velha. Lampião aceso. Conversava-se nas primeiras horas da noite. Os recém-vindos não vinham apertar a mão do dono da casa.
Entravam dizendo e ouvindo os períodos do preceito:
Boa! Boa noite pra todos! Boa! Tome assento!
Na saída: – Bem. Vou indo! Até! lntante!...
E a resposta: – lntantin!... Instante, instantezinho, até breve, até logo.
Nas feiras via o encontro dos compadres, semanalmente avistados. Batiam nos ombros, com empurrões afetuosos que semelhavam provocações. Nunca aperto de mão ou abraço. Este, quando em raro surgia, era um breve apertão na altura do deltoide. Entre nós, meninos, a educação mandava salvar, mas consistia infalivelmente nas frases: – Tá bom? Então? Como li vai?
As pesquisas posteriores nas cidades não modificaram o registro sertanejo. Bem poucos apertos de mão entre gente do povo. Batida no ombro, “a mão no ombro”, denunciadora amistosa.
Vezes a roda já estava formada quando aparecia um amigo. Sorria, abanando a mão na direção de cada um de nós. Vinha dar a mão ao mais graduado, ao de respeito, não íntimo. Entre as mulheres, nenhuma diferença do observado. A saudação com a cabeça nunca vi ou dificilmente vi fora da igreja. E mesmo nos templos os sertanejos e agrestinos são desajeitados, esquerdos, com um ar de cumprir encargo acima das possibilidades ginásticas.
Alguns vaqueiros de Campo Grande (Augusto Severo, RN) só sabiam bater nos peitos ou fazer o sinal da cruz diante do altar. O Vigário Velho, Manuel Bezerra Cavalcanti (1814-1894), 54 anos vigariando a mesma paróquia, afirmava que o sertanejo só sabe baixar a cabeça procurando rasto de bicho!…
Meus tios e primos nas festas da rua (Vila) cumprimentavam o grupo numa brusca sacudidela de ombros e cabeça ao mesmo tempo. Estiravam a mão hirta, dura, de pau, sem apertar. Quem aperta a mão é praciano. Do sertão de São Paulo afirma o mesmo Cornélio Pires.
O adeus a distância era estender o braço, curvo, pouco acima da cabeça, a mão direita agitada, abanando com a palma voltada para dentro. Mostrando a palma da mão é influência moderna e das cidades. E fazendo o gesto de quem lava vidraça, mexendo a mão como limpador de para-brisa, é recentíssimo.
Esses eram os estatutos da cortesia sertaneja, no tempo em que vintém era dinheiro.
Os Drs. Arthur Neiva e Belisário Pena (Viagem científica, 1916) registraram uma aculturação. Já apertavam as mãos, mas a mão no ombro era indispensável. Informam os dois sábios: “Na zona percorrida da Bahia, Pernambuco e Piauí existe curioso modo de saudação entre os recém-chegados; apertam as mãos e em seguida pousam uma das mãos sobre o ombro do amigo, enquanto fazem perguntas de estilo. É cumprimento obrigatório e provavelmente representa hábito de etiqueta usada em outras épocas”. A observação é de 1912. A etiqueta antiga seria a mão no ombro, unicamente. Assim saudavam-se os fidalgos cavaleiros da Idade Média.
Luís da Câmara Cascudo, in Coisas que o povo diz

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