quinta-feira, 22 de março de 2018

Despedir dá febre

Xilogravura de Arlindo Daibert

No que vim para um grupo de companheiros, esses estavam jogando buzo, enchendo folga. Por simples que a companheirada naqueles derradeiros tempos me caceteava com um enjoo, todos eu achava muito ignorantes, grosseiros cabras. Somente que na hora eu queria a frouxa presença deles ― fulão e sicrão e beltrão e romão ― pessoal ordinário. A tanto, mesmo sem fome, providenciei para mim uma jacuba, no come-calado. E quis ― que até me perguntei ― pensar na vida! Penso? Mas foi no instante em que todos levantaram as caras: só sendo um rebuliço, acolá, na virada que principiava a vertente ― onde é que estavam uns outros, que chamavam, muito, acenando especial. Pois fomos, ligeiro, ver o que, subindo pelo resfriado.
Passava era uma tropa, os diversos lotes de burros, que vinham de São Romão, levavam sal para Goiás. E o arrieiro-mestre relatando uma infeliz notícia, dessas da vida. ― Ele era alto, feições compridas, dentuço? ― Medeiro Vaz exigiu certeza. ― Olhe, pois era ― o arrieiro respondeu ― e, antes de morrer, deu o nome: que era Santos-Reis... Mais não propôs dizer, porque aí se exalou. Comandante, o senhor creia, nós tivemos grande pena... A gente, em volta, se consternava. Aqueles tropeiros, no Cururú, tinham achado o Santos-Reis, que morria urgente; tinham acendido vela, e enterrado. Febres? Ao menos, mais, a alma descansasse. A gente tirou chapéus, em voto todos se benzendo. E o Santos-Reis era o homem que vivo fazia mais falta ― ele estava viajando para trazer recado e combinação, da parte de Sô Candelário e Titão Passos, chefes em nosso favor na outra grande banda do Rio.
Agora alguém carece de ir... ― Medeiro Vaz decidiu, olhando salteado; amém! ― nós apreciávamos. Eu espiei, caçando Diadorim, que ali bem defronte de mim se portava, mesmo segurava uma vara-de-ferrão, considerei nele certo propósito, de despique gandaiado. Apartei minhas vistas. Requeri, dei passo: ― Se sendo ordens, Chefe, eu gostava era de ir... Medeiro Vaz limpou a goela. A meio, eu estava me lançando, mas mais negaceando prosápia: duvidoso d ele consentir; pelo bom atirador que eu era, o melhor e mór, necessitavam de mim, haviam de querer me mandar escoteiro, dizedor de mensagem? E aí se deu o que se deu ― o isto é. Medeiro Vaz concordou! ― Mas carece de levar um companheiro... ― ele propôs. Aí em tanto eu não devia de me calar, deixar alheia a escôlha do segundo, que não me competia? Ah, ânsia! que eu não queria o que de certo queria, e que podia se surtir de repente... E a vontade de fim, que me ora vinha ranger na boca, me levou num avanço! ― Sendo suas ordens, Chefe, o Sesfrêdo comigo vai... ― falei. Nem olhei Diadorim. Medeiro Vaz aprouve. Me encarou, demais, e despachou, em duríssimo! ― Vai, então, e no caminho não morre! A ser que Medeiro Vaz, por esse tempo, já acusava doença a quase acabada ― no peso do fôlego e no desmancho dos traços. Estava amarelo almecegado, se curvava sem querer, e diziam que no verter água ele gemia. Ah, mas outro igual eu não conheci. Quero ver o homem deste homem!... Medeiro Vaz ― o Rei dos Gerais...
Por que era que eu estava procedendo à-tôa assim? Senhor, sei? O senhor vá pondo seu perceber. A gente vive repetido, o repetido, e, escorregável, num mim minuto, já está empurrado noutro galho. Acertasse eu com o que depois sabendo fiquei, para de lá de tantos assombros... Um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala. Digo! o real não está na saída nem na chegada! ele se dispõe para a gente é no meio da travessia. Mesmo fui muito tolo! Hoje em dia, não me queixo de nenhuma coisa. Não tiro sombras dos buracos. Mas, também, não há jeito de me baixar em remorso. Sim, que só duma coisa. E dessa, mesma, o que tenho é medo. Enquanto se tem medo, eu acho até que o bom remorso não se pode criar, não é possível. Minha vida não deixa benfeitorias. Mas me confessei com sete padres, acertei sete absolvições. No meio da noite eu acordo e pelejo para rezar. Posso. Constante eu puder, meu suor não esfria! O senhor me releve tanto dizer.
Mire veja o que a gente é! mal dali a um átimo, eu selando meu cavalo e arrumando meus dobros, e já me muito entristecia. Diadorim me espreitava de longe, afetando a espécie duma vagueza. No me despedir, tive precisão de dizer a ele baixinho:
Por teu pai vou, amigo, mano-oh-mano. Vingar Joca Ramiro... A fraqueza minha, adulatória. Mas ele respondeu: ― Viagem boa, Riobaldo. E boa-sorte... Despedir dá febre.
Guimarães Rosa, in Grande sertão: veredas

Nenhum comentário:

Postar um comentário