sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

O ex-futuro padre e sua pré-viúva

A vida é uma teia tecendo a aranha. Que o bicho se acredite caçador em casa legítima pouco importa. No inverso instante, ele se torna cativo em alheia armadilha. Confirma-se nesta estória sucedida em virtuais e miúdas paragens.


Era o Benjamim Katikeze. Desde pequeno ele se dedicara a ausências, paralelo ao céu. Os outros brincavam, festejando os ínfimos nadas da infância. Só o Benjamim definhava na catequese, entre santos e incenso. Mesmo os pais, que lhe queriam composto e ordeiro, achavam que era por demasia.
Vai brincar, Ben. Aproveita ser criança.
Mas o Benjamim, inaudiente, se desmeninava. O corpo madurava, idades além. As noites desfilavam e faziam-se côncavas para proveito de rapazes e raparigas. Só as mãos do mencionado se mantinham juntas, coladas, imaculadas. O Ben seguia mais alto que as almas.
Até que um dia apareceu Anabela, anabelíssima. Era uma rebuçada, capaz de publicar desejos nos mais pacatos olhos. Anabela apaixonou-se por Benjamim. O pobre nem com isso: ao contrário, mais ainda se internava em habilidades de kongolote. A menina enviou bilhetes, mensagens mais suspiradas que rabiscadas. Na presença dele, Anabela se desembrulhava. Mas sempre é assim: quando há o trecho, falta o apetrecho. E para mulher atiradiça, homem recatadiço. Ponha-se os iis nos pontos. Respective-se.
O bairro, nos enquantos, entretinha suas mil bocas com o romance desencontrado. No bar vizinho se comentava:
Mulheres? Quanto mais gingam o corpo mais fecham o coração.
Eu sei o que ela quer: é taco, carteira gorda. Afinal, boa e de graça só mesmo a chuva.
Não, não é caso de dinheiro. Se o próprio Henrique, mulato igual como ela, foi negado na proposta de anelamento.
Dissessem. A verdade era só uma: Anabela, por todos desejada, queria-se só com Benjamim. Contudo, ele seguia seus votos, resumido. Queria entrar no Seminário, estudar padreologia. Na espera, o seu único empenho era a oração. Ben era bastante orativo.
Os ataques de Anabela se fizeram mais cerrados. Parecia que quanto mais inviável mais ela nele se fincava. Ou quem sabe a vontade se nutre de impossíveis? Anabela passou a visitá-lo em horas desocultadas. Muitos lhe viram sair de casa do Benjamim suprarreptícia, atrevivida.
A rapariga parecia querer o escândalo. Mesmo ao pronunciar o nome dele, ela se deslizava: “Benjamim: beija a mim?”. As gentes sussurravam. Até quando o rapaz se aguentaria, beato repelindo o ato?
Não aguenta. Algum homem é inoxidável?
Mas as aparências são maiores que as sucedências. E o real espanto: a barriga da Anabela desatou a crescer. Anabela, a Anabela.
O pai dela, o respeitoso Juvenal, tomou então honrosas profilaxias. Afinal, todos sabiam: o Juvenal era um homem muito destremido. Esperavam-se as consequências. O dedo na campainha da casa de Benjamim anunciou a tempestade:
Senhor Benjamim?
O próprio.
Venho saber da data.
Qual data?
A data do casamento.
Casamento? De quem?
Do seu, senhor Benjamim. Do seu casamento com a minha filha Anabela.
A mandioca já azedava. O Ben passava a estrangeiro em sua própria casa. Cidadão em apuros de sobrevivência, ainda malbuciou. Mas o outro:
É seminarista? E depois? Conheço-lhes: são os piores!
O Juvenal, sogro em véspera de tomada de posse, não aceitava argumentiras: o nascente era indubitável, legítimo e incondicional. E, assim, o homem foi-se, deixando Benjamim à porta da noite. Estava-lhe o pensamento desmemoriado, sem palavra. Afinal, nenhuma tristeza pode ser explicada. Porque é ferida para além do corpo, dor para lá do sentimento. E a angústia do Benjamim era inundação cobrindo tudo. Ele se adivinhava sob a toalha do escuro, como se a vida e a morte lhe fossem simétricas. Só por causa de um engano, todo o seu sonho havia sido anulado. Já não seria padre, sua única aspiração. E teria que casar com alguém que só lhe inspirava aflição. Sem socorro terreno, Benjamim rezava com tanta fervura que todas as calças se romperam nos joelhos. Mesmo as do fato de casamento tiveram de ser costuradas.
Casaram-se irremediavelmente. Anabela e Benjamim e vice-versa. Com eles se matrimoniaram as famílias, cruzando-se nomes e destinos. E os dois passaram a entreviver-se, mútuas testemunhas de suas intimidades. O dia-a-noite era um impossível entendimento. Ele, virginoso, só dava ocupação às rótulas, nos sucessivos joelhamentos. Ela sempre querendo bailações, distratividades.
E, afinal, a grávida dela não se consumou. Não que houvesse aborto ou esvazamento. Nada não houve. Anabela desbarrigou-se por mistério. Benjamim não fez pergunta: melhor seria o ignorantismo. E, assim.
Anabela, entretanto, cansou de usar suas belezas sem que Ben exercesse másculas funções. Decidiu-se então a consultar o vizinho, um idoso enfermeiro reformado, de nome Bila.
Que passa, vizinhinha?
Ela respondeu que era assunto muito interior, o vizinho convidou a que entrasse. Anabela ocupou escasso assento, embaraçada. Passou os olhos desconfiados pela sala:
Desculpa, senhor enfermeiro. Mas ainda não encontrei parede surda.
O enfermeiro sorriu com beneficência, aquietando a moça. Ela que falasse à vontade: eram paredes da máxima confiança. Anabela confessou o motivo de suas infelicidades: o pseudo-Benjamim. O velho escutou palavras, lágrimas, suspiros. No fim, fez a síntese:
Quer dizer, ele maridou-lhe mas não exerce a soberania.
Ela gostou do resumo mas já não concordou com próximo julgamento dele.
É uma coisa que se vê, Anabela. Vê-se que não é uma esposa completa. Você anda sempre cabisbaixinha.
Ela fez um sinal tentando interromper mas o Bila prosseguiu: “Me admira, o Ben, tão cheio de corpo”. E depois riu-se: “É como o saco de carvão, parece corpulento mas não se sustenta em pé”.
Não é isso que o senhor pensa. Só gostava que o senhor ajudasse o pobre Ben.
Desculpa, Anabela, mas não dá.
Ele divulgou suas limitações: como enfermeiro nada sabia, como vizinho menos ainda podia.
Essas coisas não são competência de hospital.
Bila levantou-se. Puxou de um lenço e limpou o rosto. Depois, foi à janela e espreitou para nada. Acomodou-se dentro do casaco antes de falar.
A cura desses males só encontra-se na tradição. Mas vocês, da cidade, já começam a negar…
Eu não nego nada. O Ben é que nunca iria aceitar, por causa da religião.
Mas, o quê? Amar a mulher respectiva é contra alguma religião?
Não, mas isso de feitiço…
Deixa o assunto comigo, Anabela. Eu convenço o Ben, já lhe conheço há muito tempo.
O enfermeiro explicou os procedimentos: o marido em apuros começaria por se banhar numa água de raízes.
É para lavar o chissila dele?
Anabela duvidou, queria os detalhes. Chissila? Sim, era a origem daquela má sorte do marido. As raízes lavariam o pobre Ben do mau-olhado. Depois, prosseguiu Bila, seguir-se-ia a vacina.
Então aí já entra o senhor enfermeiro, como tal.
O vizinho negou. Era uma vacina tradicional, feita de poeiras do fogo, cinzas de osso de leão.
Leão? Onde se encontra leões num tempo destes?
São leões antigos, coloniais. Qualidade garantida.
Quem aplicaria a vacina seria uma velha feiticeira que ele conhecia, de artes capazes de inflamar de paixão um morro-de-muchém. Até cooperantes lhe iam consultar. A feiticeira, dizia o vizinho, era várias vezes internacional. Mas o Benjamim teria que se transferir, com alma e bagagem, para a residência da feiticeira.
Um curso de capacitação, como dizem por aí.
O teste final de aprovação seria feito com a própria velha. Se o Benjamim ficasse apurado, nunca mais desperdiçaria oportunidade com a formosa Anabela.
Dormir com a velha, o meu Benjamim?
Não havia alternativa, disse o enfermeiro. Feridas da boca curam-se com a própria saliva. Ela argumentou os seus receios:
Ouvi dizer que há homens que só conseguem com velhas, essas de idade avançadíssima. Com as jovens desconseguem.
Anabela voltou a casa cheia de dúvidas. Um pesadelo a perseguiu muitas noites. Sonhava que, ao adormecer, virava velha, coberta de rugas e escamas. Ela envelhecia no imediato momento em que tombava no sono. O marido desconhecia essas mudanças, ora bela, ora monstro. Certa vez, porém, o sonho se desenrolou assim: depois de cumprirem amores ela adormeceu enquanto ele a contemplava com paixão. Então, perante os olhos dele se deu a espantosa transfiguração. A pele lisa se encarquilhou, o corpo fresco se antiquou. Ele ficou atónito, capaz de desexistir. Foi ao vizinho, consultou o Bila.
Preciso de que um feiticeiro anule o feitiço que pesa sobre Anabela.
O Bila respondeu-lhe com uma pergunta: como sabia ele se Anabela não era, de fato, uma velha que se fazia jovem durante o dia?
E que diferença faz?
Faz muita, Ben. Se a sua mulher for essa que você viu adormecida, então você ficará com uma velha rugosa para toda a vida.
Mas eu quero desfazer o cushe-cushe.
Está bem. Mas depois não diga que não lhe avisei.
Ainda no sonho, Anabela se via a despertar numa manhã brumosa. Olhando-se ao espelho ela se descobria engelhada, parecia defunta arrependida. Sacudia o espelho até ver o seu rosto estilhaçar-se. Mas em cada pedaço de vidro ela se confirmava tresenrugada. Lavava-se com água tépida, alisava-se com cremes de ervas. Nada, as rugas teimavam, invencíveis. E quando tentava sair do quarto, as pernas, entorpecidas, lhe fugiam.
Anabela acordava do pesadelo, coberta de suores. Corria ao espelho para certificar o seu aspecto. O espelho devolvia-a lisa e polida. Ela suspirava no consolo da realidade.
Os maus sonhos continuaram mesmo depois de Benjamim ter partido para casa da feiticeira. Anabela não conseguia imaginar que argumentos teria usado o enfermeiro para convencer o marido. Mas, a verdade é que o Benjamim arrumou uma pequena mala e, sem dizer palavra, se ausentou. Ficou três semanas na cura. Anabela contou os dias nos dedos do desespero. Voltaria normal? Ou traria novos hábitos do convívio com a velha? Finalmente, ele chegou. Anabela ficou de olhos cheios, sem nada perguntar. Benjamim estava pálido, mais transtornado que retornado. Sentou-se na cama e olhou longamente a esposa. Ela interrogava aquela pose dele. Que alma estaria por detrás daquele homem?
Ficaram calados por um tempo. Ben fez um sinal para que ela se aproximasse. Anabela ergueu-se, sentindo já o vulcão do desejo lhe inundando. Ajoelhou-se em frente do marido:
É o quê, Ben?
O braço dele vagueou, bêbado, perto dos seus seios. Ela sorriu, fez-se mais próxima. Benjamim murmurou qualquer coisa, parecia mais suspiro que palavra. O arrepio de uma mão invisível estremeceu a jovem esposa.
Eu quero — disse ele.
Ela começou a desbotoar-se, parecia que o vestido tremia sob os dedos. Sentou-se mais junto dele, à espera. Um novo murmúrio escapou dos lábios de Benjamim:
Eu quero…
Eu também.
Eu quero água. Dá-me água, Anabela.
Um fundo desânimo lhe percorreu a carne. Ficou parada, entre o descrédito e a frustração. No enquanto da sua demora, Benjamim se levantou bruscamente. Porém, antes de dar um passo, tonteou no ar e caiu pesadamente no chão com menos consistência que um tapete.
Levaram-no, deitaram-no, tentaram em vão despertá-lo. Mas o Benjamim mantinha-se para lá das pálpebras: respirareava. Anabela chorava o marido em estado vegetal, falando-lhe com doçura como se ele ainda a ouvisse. Passava as noites em claro, atenta ao ser deitado a seu lado.
Os tempos trespassaram. Uma noite, já a Lua se hasteara, Anabela adormeceu, vencida pelo cansaço. No meio do sono, contudo, ela sentiu um arrepio como se alguém lhe tocasse. Ficou imovente, esperante. Não havia dúvida: eram mãos em artifícios de ternura. Agora lhe envolviam a cintura e lhe enchiam de uma quentura que há muito desperdiçava em suspiros. Ela acelerou o sangue: quem seria o autor daquelas apetências? O Benjamim? Não, não podia ser ele. Se ele nunca ousara, mesmo antes do acidente. Então, ela se fingiu dormida e o anônimo amante se espelhou em seu corpo, mar e praia se entreencheram. De olhos sempre fechados, ela recebeu o intruso, esse gatuno da sua triste solidão. Por noites, se repetiu o encontro cego. De pálpebras descidas, ela recebia o estranho. Amavam-se em fúria mas em silêncio. Ela receava que o Benjamim despertasse e surpreendesse o desconhecido. E foram madrugadas cumpridas aos gemidos, suspiros fundos de quem perde o ser.
Até que um dia, o enfermeiro Bila, na sua visita diária ao enfermo, anunciou:
Benjamim já estremexe os dedos. Amanhã, acorda todo, completo.
Foram palmas, risadas. Todos festejaram. Todos menos Anabela. A sua exdiferença foi notada pela sograria. A mãe, salvando aparências:
Coitada. Ela está tão gasta que já nem reage.
A jovem esposa, realmente, assumira o rosto cínzeo das viúvas. E, ao acompanhar as visitas à porta, se via que ela continha o desabar de uma lágrima. O enfermeiro, preocupado, chamou-lhe à parte:
Que tens, Anabela? Não se sente boa?
Ela não se devolveu. Baixou o rosto, rompeu-se o dique da sua íntima amargura. Aceitou o lenço e arrumou o aspecto. Corrigiu-se, a voz tremeluzindo:
Não pode deixar ele dormente mais uns dias? Só mais uns dias?
O enfermeiro admirou-se, soerguendo a cabeça. Ela traduziu-se:
É que queria ficar mais um tempo com ele. Queria tanto, senhor enfermeiro.
Com ele, quem?
E, de novo, lágrimas. O vizinho, de perplexa anuência, mais padre que enfermeiro. Acreditando ter recebido a confissão de um desjuízo, tranquilizou a jovem esposa:
Está certo, minha filha. Eu entendo muito bem: você é tão bonita, tão pretendida. Como é que se podia guardar tantíssimo tempo?
E dirigiram-se os dois para o quarto do vivibundo. Enquanto o enfermeiro preparava as seringas, ela se debruçou sobre o marido. Talvez só ele, o retirado Benjamim, tenha escutado o segredo que ela lhe entregou. Pelo menos, o enfermeiro surpreendeu qualquer coisa como um sorriso no canto da boca de Benjamim. E, sorrindo também ele, lhe injeccionou novas dormências.
Mia Couto, in Cada homem é uma raça

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