sábado, 17 de fevereiro de 2018

Confissões da mulher de um caseiro

Tudo acabou em 1975, na terrível geada de julho. Lembro os dias ensolarados do outono e a última colheita no cafezal antes da primeira manhã fria, quando o campo ficou coberto de agulhas de gelo. O cafezal parecia uma manta de sal grosso. O orvalho daquele inverno foi uma desgraça.
Eu cozinhava para os patrões, passava os grãos de café no moedor e preparava um café forte de manhãzinha. Isso me dava prazer. O café que uma neta de poloneses servia para filhos de alemães na época gloriosa dessa região. Era uma região selvagem; meu pai, jovem, ajudou a desbravar esta terra para os ingleses da Companhia de Terras do Norte do Paraná; depois da Segunda Guerra, ele foi trabalhar numa gleba de Nova Dantzig, o antigo nome de Cambé. Ele conheceu minha mãe na Colônia Bratislava, onde meu avô materno tinha um sítio. Meus pais morreram lá mesmo, quando eu era criança.
Andei por todo esse norte, por toda essa terra vermelha, arroxeada, essa terra que já foi uma floresta de cedros, perobas e ipês. Eu sou de Guarapuava, de Cambé, Pinhão, Bratislava, conheço tantas cidades… Mas eu gostei mesmo foi deste lugar. Da casa de madeira, onde morei com o meu marido, o caseiro dos alemães. Foi assassinado por uns bandidos que perseguiam outro homem, mas confundiram este homem com o meu e mataram um inocente. Meu patrão tentou fazer justiça, mas os matadores eram capangas de políticos, gente bárbara, bichos, pior que bichos. Foi recurso atrás de recurso e a justiça não deu em nada.
Envelheci sem ver os assassinos do meu marido na cadeia. Mais um crime esquecido. Lembro que meu patrão ficou furioso, mais vermelho que esta terra, ele até disse: “Se não tem justiça, não tem futuro”. E gritou uns palavrões na língua dele, não entendi nada, mas posso imaginar. Ele e a patroa me deixaram morar na casa de peroba.
Meus avós poloneses odiavam os alemães e os russos, também diziam palavrões em polonês, e isso eu entendia. Só não entendia a razão de tanto ódio. Histórias de guerra. Mas eu sou brasileira, uma paranaense de Bratislava. Elzibieta, meu nome de batismo. Ficou Bete, mais fácil. Polaca, como dizem.
Quando enviuvei, não quis mais saber de homem. Eu cozinhava, passava a roupa, servia o café colhido na lavoura, torrado aqui mesmo. Não era um fazendão, mas tinha horta, pomar, tudo. E vacas leiteiras: zebus. Minha patroa me ajudava a fazer queijo e doce de leite. Eu lavava a roupa no rio, tomava banho na nascente, cuidava das crianças, passeava com elas. Um rio lindo: esse mesmo rio. O céu no entardecer ficava coalhado de pombinhas e maritacas, parecia uma poeira verde no azul, mil asas escuras que faziam estardalhaço. Era bonito e me ajudava a viver. Na casa e na lavoura tinha hora para tudo: os alemães pareciam relógios no campo.
Depois da geada de 1975 eles compraram uma casa de madeira em Cambé; o patrão disse que era a minha casa. Ele vendeu a fazenda, o novo proprietário plantou cana, mandou derrubar as paredes da sede e da casa onde eu morava. Não retiraram os entulhos nem os móveis, nada. Venho para cá um domingo por mês e sento em frente dessa lareira, onde eu brincava com as crianças depois do almoço. Escovava os dentes dos meninos naquela pia que está no chão, no meio de azulejos quebrados. E, quando o cuco cantava quatro horas, eu levava as crianças para a beira do rio. Nosso domingo era assim: um passeio de manhã pela lavoura, depois eu acompanhava as crianças até a nascente do rio; à tarde nós nadávamos e ríamos com a gritaria das maritacas. De noitinha eu dava banho nos meninos, e antes de dormir eu rezava e me lembrava do meu marido. Aquele cercado com base de tijolos era o nosso quarto. Fecho os olhos e imagino a nossa casa, as noites que dormimos juntos, o corpo do homem que eu amava. Ainda bem que deixaram esse entulho. Posso imaginar as duas casas e o tempo que vivi aqui. Isso me dá esperança e paz. É o melhor domingo do mês.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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