sábado, 20 de janeiro de 2018

Leitor intruso na noite

Para Ana Lúcia Trevisan

Na semana passada, tarde da noite, lia à mesa de um bar um conto de um escritor argentino quando um homem da minha idade se aproximou de mim e engrossou:
Sou um leitor e vim acertar as contas com você.”
Ia perguntar alguma coisa, mas ele prosseguiu, com voz áspera:
Por dois motivos: o primeiro, é que você me excluiu do seu romance. O segundo, e o mais grave, é que você matou meu pai nesse mesmo romance.”
Fechei o livro e encarei com receio aquele intruso que falava com a disposição de um inimigo. Não sei como, uma voz saiu de dentro de mim:
Você foi excluído? Eu matei seu pai?”
Isso mesmo. Seu romance é um relato calunioso, uma grande mentira. Eu sou o terceiro irmão, que você ignorou de uma forma vil. Além disso, meu pai continua vivo. Meu pai… É um absurdo o que fez com ele.”
O vidro das duas janelas do bar estava embaçado; mesmo assim, procurei com os olhos um recorte da noite, tentando entender se era verdade o que eu acabara de ouvir ou se, de fato, aquele leitor estava a três palmos do meu rosto.
Chuviscava em São Paulo. Ninguém na calçada; o garçom havia sumido. O vento frio entrava pela única porta aberta. Pensei: devia ter ido embora quando o bar estava cheio de gente. Em São Paulo o último crime nunca é o último. Alguém está morrendo neste instante, alguém dispara uma arma e amanhã essa notícia será velha e inútil. Ia tomar um gole de conhaque, mas minhas mãos tremiam e achei prudente não revelar meu medo. Sem olhar para o intruso, me levantei com uma calma fingida. O conto que tinha lido me deixou mais confuso e medroso. Percebi que estávamos sozinhos; quase ao mesmo tempo percebi que o homem era muito mais forte do que eu. Por um momento — talvez cinco segundos —, pensei que a conversa, depois das acusações, chegara ao fim.
Um bêbado soltou um grito em algum lugar do quarteirão, e esse som me distraiu e aliviou um pouco. Depois o silêncio, o rosto ameaçador diante de mim. De repente, o homem enfiou a mão direita no bolso do casaco e em seguida abriu a outra mão com um gesto de mágico que me pareceu patético. Vi uma lâmina enferrujada na mão aberta e ouvi uma sentença em voz grave:
Para um mentiroso e covarde como você, não há saída.”
Assustado, apenas murmurei: “Há uma”.
Fechou a mão, apontou a lâmina escura no meu peito; olhou furtivamente para a porta e perguntou com desprezo:
Qual?”
Escrever outro livro, incluir um terceiro irmão na trama do romance e ressuscitar seu pai.”
E assim fiz, escrevendo como um louco durante a madrugada, escrevendo quase sem fôlego até o amanhecer, quando enfim me livrei do pesadelo.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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