quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

A morte de Susana San Juan

Estou com a boca cheia de terra.
Sim, padre.
Não diga: “Sim, padre.” Repete comigo o que eu for dizendo.
O que o senhor vai me dizer? Vai pegar a minha confissão outra vez? Por que outra vez?
Esta não vai ser uma confissão, Susana. Só vim conversar com você. Preparar você para a morte.
Eu já vou morrer?
Vai, filha.
Então por que não me deixa em paz? Estou com vontade de descansar. Devem ter pedido ao senhor que viesse tirar meu sono. Que ficasse aqui comigo até meu sono ir embora. E o que eu vou fazer depois para encontrar meu sono? Nada, padre. Então por que o senhor não vai embora de uma vez e me deixa tranquila?
Vou deixar você em paz, Susana. Conforme você for repetindo as palavras que eu disser, irá adormecendo. Vai sentir como se você mesma se ninasse. E vai ver que quando você dormir, ninguém mais irá despertá-la... Você não vai voltar a despertar nunca mais.
Está bem, padre. Vou fazer o que o senhor disser.
O padre Rentería, sentado na beira da cama, as mãos postas sobre os ombros de Susana San Juan, com sua boca assim quase grudada na orelha dela para não falar alto, encaixava secretamente cada uma de suas palavras: “Tenho a boca cheia de terra.” Depois se deteve. Tratou de ver se os lábios dela se moviam. E os viu balbuciar, embora sem deixar sair som algum.
Tenho a boca cheia de ti, da sua boca. Seus lábios apertados, duros como se mordessem oprimindo meus lábios...”
Também se deteve. Olhou de viés o padre Rentería e viu-o ao longe, como se estivesse por trás de um vidro embaçado.
Depois tornou a ouvir a voz esquentando seu ouvido:
Tenho saliva espumosa; mastigo torrões coalhados de vermes que se aninham na minha garganta e raspam o meu céu da boca... Minha boca se afunda, contorcendo-se em trejeitos, perfurada pelos dentes que a perfuram e devoram. O nariz amolece. A gelatina dos olhos se derrete. Os cabelos ardem numa labareda só...
Estranhava a quietude de Susana San Juan. Teria querido adivinhar seus pensamentos e ver a batalha daquele coração por rejeitar as imagens que ele estava semeando dentro dela. Olhou seus olhos e ela devolveu o olhar. E ele achou que estava vendo como os lábios dela forçavam um sorriso.
Ainda falta uma coisa. A visão de Deus. A luz suave de seu céu infinito. O gozo dos querubins e o canto dos serafins. A alegria dos olhos de Deus, a última e fugaz visão dos condenados à pena eterna. E não apenas isso, mas tudo conjugado com uma dor terrena. O tutano dos nossos ossos convertido em lume e as veias do nosso sangue em fios de fogo, fazendo-nos contorcer de uma dor incrível; que não míngua nunca; atiçado sempre pela ira do Senhor.
Ele me abrigava entre seus braços. Ele me dava amor.”
O padre Rentería repassou com os olhos as figuras que estavam à sua volta, esperando o último momento. Perto da porta, Pedro Páramo esperava com os braços cruzados; em seguida, o doutor Valência, e junto a eles outros senhores. Mais além, nas sombras, um punhado de mulheres para quem já estava se fazendo tarde para começar a rezar a oração dos defuntos.
Teve intenção de se levantar. Dar os santos óleos à enferma e dizer: “Terminei.” Mas não, ainda não terminara. Não podia entregar os sacramentos a uma mulher sem conhecer o tamanho de seu arrependimento.
Sentiu que entrava em dúvidas. Talvez ela não tivesse nada de que se arrepender. Talvez ele não tivesse nada a perdoar. Inclinou-se suavemente sobre ela, e sacudindo seus ombros, disse em voz baixa:
Você está indo até a presença de Deus. E sua sentença é desumana para os pecadores.
Depois aproximou-se outra vez de seu ouvido; mas ela sacudiu a cabeça:
Vá embora de uma vez, padre! Não se mortifique por mim. Estou tranquila e tenho sono.
Ouviu-se o soluço de uma das mulheres escondidas na sombra.
Então Susana San Juan pareceu recobrar a vida. Endireitou-se na cama e disse:
Justina, faça-me o favor de ir chorar em outro canto!
Depois sentiu que a cabeça se cravava em seu ventre. Tentou separar o ventre de sua cabeça; afastar aquele ventre que apertava seus olhos e cortava sua respiração; mas cada vez se inclinava mais como se afundasse na noite.

Eu... Eu vi dona Susanita morrer.
O que você está dizendo, Dorotea?
Estou dizendo o que acabo de dizer.
Juan Rulfo, in Pedro Páramo

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