terça-feira, 23 de janeiro de 2018

A hora do meio-dia

A superstição meridiana ainda é viva e forte no Brasil. Tanto quanto em Portugal e Espanha de onde a tivemos.
Não sei da porcentagem que poderia caber aos incas, astecas e maias por uma crendice referente ao Sol no zênite, perdurando nas populações ameríndias. Não conheço lenda referente ao meio-dia entre os nossos amerabas. O salmo 91,6 cita o Demônio do Meio-Dia, daemonio meridiano, tão de recear-se quanto a calamidade mortífera ocorrente nessa hora: – a pernicie quae vastat meridie. Sobrevive na imaginação coletiva a vaga imagem demoníaca, liberta do Inferno e operando na coincidência horária.
No Meleagro (Rio de Janeiro, 1951), divulgo uma Oração do meio-dia com força de atração amorosa. As pragas irrogadas a essa hora são de eficácia indiscutível. No Relógios falantes, D. Francisco Manuel de Melo registra a versão obstinada: – Velha conheci eu já, que ensinava às moças que as pragas rogadas das onze para o meyo dia erão de vez, porque todos empécião. Também, na face benemérita, as súplicas são atendidas desde que coincidam com o coro dos Anjos, cantando as glórias a Deus, justamente no pino do meio-dia.
Hora sexta, parada e morna para os romanos que a temiam. Hora sexta, criando a sesta. Na Grécia, silenciavam cantigas e avenas pastoris porque era a hora em que Pan, o grande Pan, adormecia, farto de correrias. Interrompido o sono, pagaria caro o atrevido perturbador. Na campina de Roma respeitava-se a sesta dos deuses silvestres fatigados. Na Idade Média era possível ouvir-se o fragor tempestuoso da cavalgada fantástica, seguindo o caçador eterno, Wuotans Heer, das wütende Heer, infernais. As pedras deslocam-se na França. O homem das águas rapta as crianças na Morávia, repetindo as Nereidas gregas e a Poledinice da Boêmia. Surge em Palermo a feia Grecu Livanti. O Demônio do Meio-Dia persegue nas montanhas as mulheres de Creta. Um espectro feminino ronda a pirâmide de Keops. Em Portugal, o Homem-das-sete-dentaduras aparece no Cerro Vermelho, Algarve, ao meio-dia como, de sete em sete anos, corre a Zorra de Odeloca, a Berradeira, espavorindo a região. No dia de São João o Sol dá três voltas ao meio-dia e está cercado por nove estrelas fiéis.
Para nós, brasileiros do sertão, o redemoinho, os súbitos pés de vento, a poeira que sobe, brusca, diante das portas, o canto estridente do galo, os rumores inexplicáveis no telhado, nas camarinhas sombrias, nos alpendres solitários denunciam presenças misteriosas e sobrenaturais.
É uma das horas abertas em que o Diabo se solta. Os doentes pioram. Os feitiços ganham poderio nas encruzilhadas desertas.
Não pragueje, não cante alto, não assobie, não abra os braços quando os ponteiros do relógio estiverem de mãos postas.
Notem que é uma hora estranha, imóvel, com um arrepio sinistro nas folhas, tangendo os animais lentos. Hora em que o cão se enrosca para não ver os fantasmas. No sertão, hora das miragens, do falso rumaceiro nos capoeirões, denunciando um fogo inexistente. Trote de comboio, obrigando o viajante volver-se para identificar invisíveis caminhantes.
Os animais reais dormem, escondidos nas sombras das malhadas. Os encantados galopam procurando apavorar os caminheiros do sol a pino. Relincho de cavalo que ninguém enxerga. Uivo de raposa que não nasceu. Bafo de coivara, sopro quente de braseiro, jamais localizado. Vento que passa açoitando as árvores e deixando os galhos imóveis, recortados em bronze.
Cuidado com o mal que desejar nessa hora fatídica. Voto, praga, invocação, esconjuro têm projeção mágica.
Todos os ocultistas recordam a batalha astral entre l’abbé Boullan e Stanislas de Guaita, combate de magia negra, à coups d’envoûtements, duelo a distância, sem pausa e sem mercê. Boullan sucumbiu acusando Stanislas de Guaita de havê-lo assassiné astralement. As horas preferidas foram sempre meia-noite e meio-dia. Valem tanto para a feitiçaria, macumba, catimbó, a hora do sol a pino como a meia-noite tenebrosa.
Mas é hora poderosa para as orações benéficas. Rogos, promessas, súplicas, pelas horas que são. Nunca a Igreja regulou esse horário que é superstição milenar, trazida pelo europeu para o continente americano. Não se verificou que as culturas pré-colombianas a tivessem motivado.
Certas rezas assumem valores surpreendentes quando ditas no pino do meio-dia. Ditas de pé e sem telhas acima da cabeça, ao ar livre, ao Sol. Explicam a intervenção prodigiosa pela obediência inarredável ao toque do meio-dia. Batendo o relógio as doze badaladas quando o devoto está orando, há convergência de fatores imponderáveis para o êxito. Nunca perdi um meio-dia justificava-se alguém de um acontecimento venturoso, solução vitoriosa, em antiquíssima e semiperdida questão. De um funcionário estadual a quem o Governador parecia perseguir tenazmente e sem visíveis vantagens ouvimos: – Ele não pode com a reza do meio-dia!, feitas pela mulher, teimosa e crente.
Só temo neste mundo a revólver descarregado e praga ao meio-dia, dizia-me um professor eminente, veterano de gerações.
Demônio do Meio-Dia chamavam ao Rei Filipe II da Espanha. Mas para o povo é bem outra a força miraculosa em sua ameaça imortal.
Luís da Câmara Cascudo, in Coisas que o povo diz

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