sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Voluntário

O velho gaúcho foi ajudar, no posto mais próximo do hotel em que se hospedara, o serviço de assistência aos desabrigados pelo temporal. Ninguém lhe dá a idade que tem, ao vê-lo caminhar desempenado, botar colchão na cabeça, carregar dois meninos ao mesmo tempo, inclinar-se até o ladrilho, reassumir a postura ereta sem estalo nas juntas. Só que não se apressa, e quando um mais afobado desanda a correr pelo pátio ou a gritar ordens, aconselha por baixo da bigodeira branca:
Eh lá, não te apures que é lançante.
E se o outro não entende:
Devagar pelas pedras, amigo! Está sempre recomendando calma e jeito; bota a mão no ombro do voluntário insofrido, e diz-lhe, olhos nos olhos:
Não guasqueies sem precisão nem grites sem ocasião, homem!
O outro, surpreso, ia queimar-se, mas o rosto claro e amical do velho o desarma. Ainda assim, pergunta:
Mas por quê?
Porque senão te abombachas no banhado, chê!
Como tem prática de campo e prática de cidade, prática de enchente, de seca, de incêndio, de rodeio, de eleição, de repressão a contrabando e prática de guerra (autobiografia oral), propõe, de saída, a divisão dos serviços em setores bem caracterizados:
Pois não sabes que tropa grande se corta em mais de um lote pra que vá mais ligeiro?
Ajuda mesmo, em vez de atrapalhar, e procurar impedir que outros atrapalhem, o que às vezes aumenta um pouco a atrapalhação, mas tudo se resolve com bom humor. Vendo o rapazinho imberbe que queria tomar a si o caso de uma família inteira, que perdera tudo, afasta-o de leve, explicando:
Isto não é cancha pra cavalo de tiro curto.
Nomeia o rapazinho seu ajudante de ordens, e daí a pouco a família sente que, depois de tudo perder, achara uma coisa nova: proteção e confiança.
Anima a uns e outros, não quer ver ninguém triste demais da conta. Suspende no ar o garotinho que não fala nem chora, porque ficou idiotizado de terror, puxa-lhe o queixo, dá-lhe uma pancadinha no traseiro, e diz-lhe:
Estás que nem carancho em tronqueira, piazito! Toma lá este regalo.
O regalo é um reloginho de pulso, de carregação, que ele saca do bolso da calça como se fosse mágico — e é capaz de tirar outros, se aparecerem mais garotos infelizes.
Há confusão na calçada, parece que um descuidista arrebatou a bolsa daquela senhora. O velho vai ver o que é, procuram convencê-lo de que não vale a pena se meter:
Vovô, se cuide!
Mas ele tem resposta na ponta da língua:
Que está me dizendo? Eu ainda pealo de cucharra um tourito xucro!
Como o ladrão deu no pé, não houve tempo de pealar, pelo que ele volta sentenciando:
Bem que este merecia um chá de casca de vaca!
Por cima de tudo, é velho galante, embora respeitador. Não deixa passar brotinho no salão da escola, transformada em abrigo, sem lhe dirigir um olhar aprovador, de homenagem. A bandeirante, cantando e ninando o bebê sem mãe, que a enxurrada levara até aquele porto, era tão bonita que ele não se conteve, virou poeta:
No mais duro pau de espinho
Nasce uma rosa fragrante!
As moças já estão com saudade prévia dele: quando a situação se normalizar, e as feridas se curarem, o velhinho volta para o Rio Grande.
Carlos Drummond de Andrade, in 70 historinhas

Nenhum comentário:

Postar um comentário