domingo, 10 de dezembro de 2017

Segunda tentativa - Inícios de uma moral do homem sem qualidades

Mas, ao passar da cavalaria para a técnica, Ulrich apenas trocou de cavalo; o novo tinha membros de aço, e corria dez vezes mais depressa. No mundo de Goethe, o ruído dos teares ainda perturbava, mas no tempo de Ulrich começava-se a descobrir a canção das salas de maquinas, martelos de arrebite e sirenes de fábrica. Não se acredite com isso que as pessoas tenham imediatamente notado que um arranha-céu é maior do que um homem a cavalo; ao contrário, ainda hoje, quando se querem dar importância, não se sentam sobre um arranha-céu e sim sobre um cavalo alto, são rápidas como o vento e têm visão aguçada, mas não como um telescópio gigante, e sim como uma águia. Sua emoção não aprendeu ainda a servir-se da razão, e entre as duas há uma diferença de evolução tão grande como entre o apêndice e o córtex cerebral. Portanto, não é uma grande sorte descobrir, como Ulrich logo depois da adolescência, que em tudo o que considera superior o homem é bem mais antiquado do que suas máquinas.
No momento em que iniciou o estudo de mecânica, Ulrich sentiu um entusiasmo febril. Para que se precisa do Apolo del Belvedere, se temos diante dos olhos novas formas de um turbo-dínamo ou o jogo de pistões de uma máquina a vapor? Quem se encantaria com a milenar conversa sobre o bem e o mal depois de constatar que não são “constantes”, mas “valores funcionais”, de forma que o valor das obras depende das circunstâncias históricas, e o valor das pessoas depende da habilidade psicotécnica com que avaliamos suas qualidades? O mundo é realmente cômico, analisado do ponto de vista da técnica; nada prático nas relações humanas, altamente antieconômico e inexato em seus métodos; e quem estiver habituado a resolver seus problemas com a régua de cálculo, simplesmente não pode mais levar a sério metade das afirmações dos homens. A régua de cálculo consta de dois sistemas de cifras e traços combinados com inaudita argúcia, de duas varetas laqueadas de branco, que deslizam uma sobre a outra, dois recortes em forma de trapézio, com ajuda dos quais se resolvem num instante as tarefas mais complicadas, sem desperdiçar nem um pensamento; a régua de cálculo é um pequeno símbolo que se carrega no bolso interno do casaco, e se sente sobre o coração como um traço branco e duro: quem possui uma régua de cálculo, e encontra alguém que faz afirmações grandiosas ou tem sentimentos grandiosos, diz: um momento, primeiro vamos calcular as margens de erro e o valor mais provável de tudo isso!
Era sem dúvida uma concepção vigorosa da engenharia. Formava a moldura de um belo futuro auto-retrato, mostrando um homem com traços decididos, cachimbo entre os dentes, gorro de esporte na cabeça, movendo-se entre a Cidade do Cabo e o Canadá em magníficas botas de montaria, concretizando grandes projetos para a sua empresa. Entrementes, ainda há tempo para extrair do pensamento técnico algum conselho para a organização e governo do mundo, ou formular ditos como o de Emerson, que se devia pendurar em todas as oficinas: “As pessoas andam pelo mundo como profecias do futuro, e todos os seus atos são tentativas e experiências, pois cada ação pode ser superada pela ação seguinte!”
Para ser exato, essa frase fora fabricada por Ulrich, com várias frases de Emerson.
É difícil dizer por que engenheiros não correspondem exatamente a essa imagem. Por que, por exemplo, usam tão frequentemente a corrente de relógio subindo numa curva vertical do bolsinho do colete até um botão mais alto, ou a deixam cair sobre o ventre formando uma sílaba longa e duas curtas, como num poema? Por que gostam de usar alfinetes de lapela com dentes de cervo, ou colocar pequenas ferraduras nas gravatas? Por que seus ternos são feitos como os primeiros automóveis? E, finalmente, por que é raro falarem de outra coisa além da sua profissão? E, quando o fazem, por que têm essa maneira de falar especial, rígida, indiferente, alheada, apenas da boca para fora? Naturalmente isso não vale para todos, mas para muitos, e os que Ulrich conheceu ao começar o trabalho num escritório de fábrica eram assim, e no seu segundo emprego também eram. Mostravam-se estreitamente ligados às pranchetas de desenho, amantes da sua profissão, com uma admirável eficiência; mas, se lhes sugerissem aplicar a si próprios e não às suas máquinas aquelas ideias audaciosas, achariam isso tão antinatural quanto usar um martelo para matar.
Assim, terminou depressa a segunda tentativa, mais madura, de Ulrich tornar-se um homem extraordinário, usando o caminho da técnica.
Robert Musil, in O homem sem qualidades

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