sexta-feira, 8 de dezembro de 2017

Estreia nos viventes

Este homem que estou ocupando é um tal Izidine Naíta, inspetor da polícia. Sua profissão é avizinhada aos cães: fareja culpas onde cai sangue. Estou num canto de sua alma, espreito-lhe com cuidado para não atrapalhar os dentros dele. Porque este Izidine, agora, sou eu. Vou com ele, vou nele, vou ele. Falo com quem ele fala. Desejo quem ele deseja. Sonho quem ele sonha.
Neste momento, por exemplo, estou viajando num helicóptero, em missão enviada pela Nação. Meu hospedeiro anda esgravatando verdades sobre quem matou Vasto Excelêncio, um mulato que foi responsável pelo asilo de velhos de São Nicolau. Izidine iria percorrer labirintos e embaraços. Com ele eu emigrava no penumbroso território de vultos, enganos e mentiras.
Espreito das nuvens, por cima das vertigens. Lá em baixo, faceando o mar se vê a velha fortaleza colonial. É lá que fica o asilo, é lá que estou enterrado. Tem graça que eu tenha saído diretamente das profundezas para as nuvens. Olho da janela. A Fortaleza de São Nicolau é uma pequenita mancha que cabe num pedacito de mundo. Minha campa, essa nem se distingue. Vista do alto, a fortaleza é, antes, uma fraqueleza. Se notam os escombros como costelas descaindo sobre o barranco, frente à praia rochosa. Esse mesmo monumento que os colonos queriam eternizar em belezas estava agora definhando. Minhas madeirinhas, aquelas que eu ajeitara, agoniavam podres, sem remédio contra o tempo e a maresia.
Durante os longos anos da guerra, o asilo esteve isolado do resto do país. O lugar cortara relações com o universo. As rochas, junto à praia, dificultavam o acesso por mar. As minas, do lado interior, fechavam o cerco. Apenas pelo ar se alcançava São Nicolau. De helicóptero iam chegando mantimentos e visitantes.
A paz se instalara, recente, em todo país. No asilo, porém, pouco mudara. A fortaleza permanecia ainda rodeada de minas e ninguém ousava sair ou entrar. Só um dos asilados, a velha Nãozinha, se atrevia caminhar nos matos próximos. Mas ela era tão sem peso que nunca poderia acionar um explosivo. Enquanto morto eu tinha sentido os pés dessa velha me calcando o sono. E eram carícias, o mágico toque da gente humana.
Agora, eu me contrabandeava por essa fronteira que, antes, me separara da luz. Este Izidine Naíta, este homem que me transporta, não tem senão seis dias de destino. Suspeitará do seu próximo fim? Será por isso que ele se apressa agora, decidido a ganhar tempo? Vou no gesto do homem ao abrir uma pasta cheia de dactilografias. Na capa está escrito Dossier. Vê-se uma fotografia. Izidine pergunta em voz alta, apontando a imagem:
Este era Vasto Excelêncio?
Posso ver melhor?
Olho a nossa companheira de viagem, sentada no banco de trás do helicóptero. Fico com pena de não ter ocupado esse outro corpo. Marta Gimo era mulher de se olhar e lamber os olhos. Tinha sido enfermeira no asilo até à data do crime. Saíra apenas para prestar-se a testemunhações e depoimentos em Maputo.
Não vejo aqui a mulher de Vasto, disse Izidine... vagueando um dedo pela fotografia.
Marta não reagiu. Olhou o mar, lá em baixo, como se, de repente, uma tristeza a tivesse trespassado. Ficou com a foto nas mãos e respondeu em suspiro:
Nessa altura, a mulher dele ainda não tinha chegado a São Nicolau.
Ela permaneceu distante, a fotografia tombada sobre o assento. Me atentei em Izidine e tive pena do homem que eu residia: ele estava perdido, abarrotando dúvida. O que sabia ele? Que uma semana atrás, um helicóptero viajara até à fortaleza para ir buscar Vasto Excelêncio e sua esposa Ernestina. Excelêncio tinha sido promovido a importante lugar no governo central. Contudo, quando chegaram a São Nicolau já não o encontraram com vida. Alguém o tinha assassinado. Não se sabe quem nem porquê. O certo é que os do helicóptero deram com o corpo de Excelêncio esparramorto nas rochas da barreira. Viram-no quando o aparelho se aproximava da fortaleza.
Assim que pousaram, desceram a encosta para recuperar o corpo. Quando chegaram às rochas, porém, já não encontraram os restos de Excelêncio. Buscaram nas imediações. Em vão. O cadáver desaparecera misteriosamente. As ondas o levaram, assim pensaram. Desistiram das buscas e, como anoitecesse, iniciaram a viagem de retorno. Contudo, quando sobrevoavam a zona voltaram a deparar com o corpo estendido sobre os rochedos. Como voltara para ali? Estaria, afinal, vivo? Impossível. Se notavam os extensos ferimentos e não havia sinal de movimento. Deram voltas e voltas mas não era possível o helicóptero aterrar ali. E regressaram à capital. Assim sucedera.
Estamos a chegar!
Marta acenava para um pequeno grupo de velhos. O piloto nos deu indicações em voz alta: mal tocasse o solo, devíamos sair, sem demoras. O combustível dava, à justa, para a viagem de retorno. As hélices faziam eco nas paredes de pedra e nuvens de poeira se erguiam em remoinhos. Saltamos do aparelho, os velhos se encolhiam como cachorros. Agarravam-se às vestes como se flutuassem. Um deles se prendia com as duas mãos a um mastro. Parecia uma bandeira em dia de ventania.
Depois de o aparelho voltar a levantar voo, eles regressaram para os seus cantos. Marta rodou por ali, cumprimentando cada um deles. Izidine tentou aproximar-se mas os velhos se furtaram, bravios e arredios. De que desconfiavam?
O helicóptero se extinguiu em nada no horizonte e Izidine Naíta se foi sentindo desamparado, perdido entre seres que se vedavam a humanos entendimentos. Uma semana depois, o mesmo helicóptero deveria regressar para o transportar à capital. O inspetor tinha sete dias para descobrir o assassino. Não tinha fontes acreditáveis, nenhuma pista. Nem sequer sobrara o corpo da vítima. Restavam-lhe testemunhas cuja memória e lucidez já há muito haviam falecido.
Pousou o saco de viagem sobre um banco de pedra. Olhou as redondezas e afastou-se pela amurada da fortaleza. Não faltava muito para deixar de haver sol. Alguns morcegos já se lançavam dos beirais em voos cegos. Os velhos internavam-se no escuro dos seus pequenos quartos. O polícia não se demorou, receoso de que a magra luz se escoasse. Ao regressar surpreendeu um velho remexendo no seu saco. O intruso fugiu. Ainda o chamou mas ele desapareceu no escuro. Rapidamente, Izidine inspecionou o conteúdo do saco. Suspirou de alívio: a pistola ainda ali estava.
Está à procura de uma lanterna?
O polícia saltou de susto. Não notara a aproximação de Marta. A enfermeira apontou um quarto próximo e entregou uma vela e uma caixa com alguns fósforos:
Poupe bem a vela, é a única.
O polícia entrou no quarto, já sem luminosidade. Acendeu a vela e retirou as coisas do saco. No chão tombou uma pequena lata. Apanhou o objecto: não era uma lata. Seria um pedaço de madeira? Parecia, antes, uma casca de tartaruga. Izidine se intrigava: como saiu aquilo do saco de viagem? Rodou a casca entre os dedos e deitou-a pela janela fora. Depois, voltou a sair.
Izidine tinha um plano: entrevistaria, em cada noite, um dos velhos sobreviventes. De dia procederia a investigações no terreno. Depois de jantar, se sentaria junto à fogueira a escutar o testemunho de cada um. Na manhã seguinte, anotaria tudo o que escutara na anterior noite. Assim surgiu um pequeno livro de notas, este caderno com a letra do inspetor fixando as falas dos mais velhos e que eu agora levo comigo para o fundo da minha sepultura. O livrinho apodrecerá com meus restos. Os bichos se alimentarão dessas vozes antigas.
O inspetor ainda se perguntou sobre quem ouviria primeiro. Mas não foi ele que escolheu. O primeiro velho apareceu assim que Izidine saiu dos aposentos. No lusco-fusco parecia um menino. Trazia um arco de bicicleta. Sentou-se fazendo passar o aro pelo pescoço. Izidine lhe solicitou a sua versão do que ali tinha ocorrido. O velho perguntou:
Você tem a noite toda de tempo?
Colocou o homem à vontade: ele tinha a noite inteira. O velho sorriu, matreiro. E explicou-se assim:
É que aqui, falamos de mais. E sabe porquê? Porque estamos sós. Nem Deus nos faz companhia. Está a ver lá?
Lá, onde?
Aquelas nuvens no céu. São como estas cataratas nos meus olhos: névoas que impedem Deus de nos espreitar. Por isso, somos livres de mentir, aqui na fortaleza.
Antes de falar sobre a morte do diretor eu quero saber se foi você que, ontem, mexeu no meu saco!
Mia Couto, in A varanda do Frangipani

Nenhum comentário:

Postar um comentário