domingo, 19 de novembro de 2017

Interpretar a luz

Na época em que comecei a escrever, o poeta era de dois gêneros. Uns, eram poetas grandes senhores que se faziam respeitar pelo seu dinheiro, a secundar-lhes uma legítima ou ilegítima importância. A outra família de poetas era a dos militantes errabundos da poesia, gigantes de taberna, loucos fascinantes, atormentados sonâmbulos. Resta ainda — e não devo esquecê-la — a situação daqueles escritores que vivem amarrados, como forçados à grilheta, ao lugar da administração pública. Os sonhos foram-lhe quase sempre afogados por montanhas de papel selado e terríveis receios da autoridade e do ridículo.
Eu lancei-me na vida mais nu do que Adão, mas disposto a manter a integridade da minha poesia. Esta atitude irredutível não só valeu para mim como também para que deixassem de rir os parvalhões. Se tivessem coração e consciência, esses pobres diabos deveriam render-se, como bons seres humanos, perante o essencial que os meus versos despertavam. E se fossem malévolos, tomariam medo de mim.
Assim, a Poesia, com maiúscula, foi respeitada. E não só a poesia, mas também os poetas foram respeitados. Toda a poesia e todos os poetas.
Tenho plena consciência deste meu serviço à cidadania e não deixo que ninguém me arrebate a prerrogativa — porque me agrada carregar com ela como uma condecoração. O restante pode discutir-se — mas isto que conto é, nem mais nem menos, história.
Os obstinados inimigos do poeta esgrimirão muitas argumentações que já não servem. Disseram que eu andava morto de fome na mocidade. Agora, hostilizam-me persuadindo algumas pessoas de que sou um ricaço, dono de uma fortuna fabulosa que, embora não tenha, muito gostaria de ter, principalmente para os incomodar ainda mais.
Outros medem a pauta dos meus versos, provando que os divido em pequenos fragmentos ou os estico demasiado. Não tem nenhuma importância. Quem determina que os versos sejam mais curtos ou mais compridos, mais delgados ou mais gordos, mais amarelos ou mais vermelhos? O poeta que os escreve. Determina-o com a sua respiração e o seu sangue, com a sua sabedoria e a sua ignorância, porque tudo isso entra no pão da poesia.
O poeta que não seja realista está morto. Mas o poeta que seja só realista está morto também. O poeta que seja apenas irracionalista só será compreendido por si mesmo e pela sua amada, o que é bastante triste. O poeta que seja só um racionalista será compreendido até pelos asnos, o que é também sumamente triste. Para tais equações não há cifras na pauta, não há ingredientes decretados por Deus, nem pelo Diabo. Pelo contrário: estas duas personagens importantíssimas mantêm uma luta constante dentro da poesia, e nesta batalha ou vence uma ou vence a outra. Mas a poesia é que não pode ficar derrotada.
É evidente que o ofício de poeta está a ser alvo de certos abusos. Surgem tantos poetas novéis e tantas incipientes poetisas que não tardará muito a parecermos todos poetas, desaparecendo os leitores. Teremos de ir à procura deles em expedições que atravessarão os areais em camelos ou circularão pelo céu em astronaves.
A poesia é uma inclinação profunda do homem. Dela saíram a liturgia, os salmos e também o conteúdo das religiões. O poeta arriscou-se a defrontar os fenômenos da natureza e, nas primeiras idades, intitulou-se sacerdote a fim de preservar a vocação. Daí que, na época moderna, o poeta, para defender a sua poesia, aceite a investidura que lhe dão a rua e as massas. O poeta civil de hoje continua a ser o representante do mais antigo sacerdócio. Anteriormente pactuou com as trevas. Agora deve interpretar a luz.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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