terça-feira, 21 de novembro de 2017

Era. Já não é.

No portão, junto ao caminho, Lázaro Vivo despedia-se, distribuindo as bênçãos, quando Mwadia reparou que Zero Madzero sangrava. Pequenas gotas vermelhas despontavam no pescoço como botões de flores, essas mesmas que deflagravam nas águas do banho do burriqueiro.
Para Mwadia a origem dos ferimentos era simples: o marido roçara a micaia junto à vedação. Nem ela queria que Madzero viesse com a conversa das guelras. Mas para o curandeiro o assunto era de maior alarme: quem ferira Zero tinha sido a maldição do missionário. Sombra silenciosa, uma águia descera em voo picado e atacara o burriqueiro. Ninguém vira porque ela lhe entrara no corpo e o bicara por dentro.
Uma águia? Sabe, compadre Lázaro, eu já começo a ficar cansada...
Você não acredita, não é?, inquiriu Lázaro, em tom grave.
Tenho outras crenças.
Pois aqui não precisa de acreditar, minha filha. Basta viver. Veja o sangue no peito do seu marido. Veja.
Não era o momento para mastigar conversa. Lázaro entrou em casa, anunciando que ia buscar apropriado remédio. Madzero não podia entrar: ali estava o sangue, o vivo vermelho desafiando os espíritos. O adivinho trouxe um pano molhado e mandou que Mwadia lavasse as feridas de Madzero.
Lave-o a ele e lave-se a si também.
Ficaram em silêncio, sentados, como que esperando o desabar do destino. Até que o adivinho se ergueu e sentenciou:
Vamos ao rio.
Ao rio? Eu quero é regressar a casa, tratar do meu marido...
Minha amiga, o seu marido está sofrendo perigos que nenhuma casa nem esposa podem dar proteção...
Todo o caminho o curandeiro bufou, espirrou, soprou maldições, limpou o suor com um lenço branco. Quando, por fim, chegaram à margem do Mussengueze, o fatigado Lázaro ordenou:
Agora, compadre: meta as mãos na água!
Para quê?
Faça.
O burriqueiro, a medo, mergulhou os braços na corrente. De imediato, a água tingiu-se de vermelho. O pastor, assustado, olhou as mãos e gemeu:
Estou sangrando tanto?
Não é você que está sangrando, explicou o nyanga. Esse sangue já estava lá, adormecido no rio. Você apenas o despertou.
O curandeiro puxou as mangas de Zero e inspecionou-lhe os pulsos. Certificava-se de que nenhum objeto de metal havia tocado as águas. Se isso tivesse sucedido o rio poderia secar. Depois, virando-se para o burriqueiro, Lázaro sentenciou:
E agora lhe digo uma coisa: Você corre grande perigo.
Não diga isso, compadre, meu coração é uma sombra. O que devo fazer?
Você tem que levar essa Santa para um lugar sagrado.
Mas para onde? Para junto do rio, de onde a tirei?
Para aí nunca!
Mas você não disse que esse lugar é sagrado?
Era. Já não é.
Tinha sido o casal que conspurcara o lugar. Sem rodeios, o adivinho sentenciou que a Santa fosse levada para Vila Longe, o mais rápido possível.
Eu não disse?, interrompeu Madzero que, a seguir, se dirigiu a Lázaro: Você acha que posso ir à Vila?
Mwadia interpôs-se e interferiu, em defesa do marido:
Nem pensar, Zero não pode voltar a Vila Longe.
A decisão, em Mwadia, já tinha sido tomada. Ela mesma iria à vila em representação do marido.
Mia Couto, in O outro pé da sereia

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