segunda-feira, 20 de novembro de 2017

Drink

A poetisa traz-nos seu primeiro livro, porém não o entrega logo. Fica estudando nossa expressão fisionômica antes de confiar-nos a suma de tantas vivências. Fala de coisas vagas, que se tornam mais vagas ainda, pela indecisão da palavra. Certa amiga comum nos manda lembranças. Podemos fornecer o endereço de mestre Fulano? Parece que é difícil encontrá-lo em casa, qual a melhor hora? As informações são prestadas, enquanto, por nossa humilde vez, inspecionamos a poetisa. Usa vestido elegante, sob a capa elegante. É alta, morena, jovem. Um adjetivo clareia, com espontaneidade de espelho: bonita. Parece que clareou em nosso olhar, pois ela baixa a cabeça e contempla uma formiguinha no linóleo, onde — é claro — não passa nenhuma formiguinha. O livro continua preso na mão esquerda, sem que possamos desvendar-lhe o título: pudicamente, só aparece a brancura da contracapa. Não que haja figura ou dizeres obscenos a ocultar. A poetisa oculta sua poesia, nesse primeiro contato com o exterior. Passamos à ofensiva:
Que é isso que você tem aí?
Isso quê?…
O livro.
Nada, não. É um livro.
Deixe ver, se não é segredo de Estado.
Não era, mas o inimigo contemporiza: “Daqui a pouquinho”. O leitor, que acaso nos segue, achará a moça demasiado tímida ou esperta; com o nosso relativo conhecimento da alma literária, diremos que ela, ciente e emocionada, simplesmente retardava um momento irreparável: o momento em que seu livro deixaria o regaço materno para expor-se à condição de artigo-do-dia, olhado, pegado, comentado sem amor. Por isso a moça nos sondava antes de praticar a doação.
Acabou admitindo que publicara um livro; que trazia consigo um exemplar; que esse exemplar nos era destinado; mas não lhe pusera dedicatória e, conforme fosse a recepção, voltaria com a autora. Quisemos saber a razão de tamanha reserva. Desconversou, mas somos praça velha, e ouvimos o conto:
Levei um exemplar ao Barata, colunista da Folha.
Então?
Me convidou para um drink.
Que mal tem nisso, minha filha?
Bom… Nem olhou para o livro, olhou só para mim, entende?
Entendíamos. Mas o Barata — ponderamos — não é propriamente crítico literário, e, como observa o prof. Afrânio Coutinho, há uma big diferença entre reviewer e crítico.
Pois sim, o Lessa é crítico e também me convidou para um drink. Sem abrir o livro. Será que hoje é moda beber com o autor, antes de ler?
Não soubemos explicar à poetisa, e preferimos indagar se porventura os drinks lhe flagelam o fígado. Ela sorriu.
Eu adoro um alexânder ou uma cuba-libre. Mas pensei que não fosse preciso tomá-lo para merecer um julgamento ou uma notícia.
Tranquilizamo-la a nosso respeito: não escrevemos sobre livros, não frequentamos bares, não a convidaríamos para drincar. Parece que a assustou um pouco nossa austeridade romana, se é que não vislumbrou nisso um truque novo. Afinal, o braço moveu-se, o livro foi entregue. Sem dedicatória.
Não vai escrever nada?
Que gostaria que eu escrevesse?
Ah, isso você não era capaz de escrever.
Queria oferecer-nos louvores suaves, mas temia que a interpretássemos de outro jeito: queria ser seca, não podia; natural, não podia. Então deu-nos o livro sem dedicatória e, rapidamente, convidou-nos a tomar um drink.
Carlos Drummond de Andrade, in 70 historinhas

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