domingo, 19 de novembro de 2017

Dois soldadinhos mineiros

Sob céu diferente, para mim, acha-se neste mundo a das Três Barras, fazenda que foi dos meus. Só está depois de distâncias, para o poente, num empino de morros — que na infância eu tomava por himalaias fora do tempo e do real. Tem seus pastos limpos, um açude, os abismos de grotas, o pôr-do-sol mago e meigo com cores, o ar à aberta luminosidade. Tem sebes de “saborosa”, um quintal cercado de limoeiros, uma manhã de longe pescaria a que todos fomos em fila, uma farofa que alegremente se comeu. Debaixo de um jatobá esgalhado na velhice, o estaleiro para serrar madeiras. No moinho, duas cobras escuras, mansas, que pegavam ratos. Ah, e há, em noites de verão, um mar de vaga-lumes amarelos. A casa, andante e vasta, é entre transmontana e minhota, dizem; casa de muita fábrica. Para o convés — que é a varanda — sobem-se os degraus de pau de alta escada. De lá, muito se vê: a visão filtrada. Ainda pende o sino, que tocavam para chamar escravos. De antes, tempos. Aliás, parece que o último enforcamento em patíbulo público, em Minas, se deu foi, no Curvelo, com um preto que matara seu senhor, meu trisavô materno. Quando fui menino, nem em escravos se falava mais. Só havia os camaradas, que à noitinha se sentavam quietos, na varanda, nos longos bancos, esperando o chá de folhas de laranjeira. Certa hora traziam de dentro uma grande bacia; nela todos tinham de lavar os pés? Minha tia Carlota hoje me corrige: a bacia era cheia de brasas, de rescaldeiro para, nas noites frias, os homens se aquecerem. Tanto confundo; lavar os pés, numa bacia, quem tinha de obedecer a isso era eu, antes de ir dormir. Atrás do tempo. Mas é mais próximo, o que vou contar.

. . .

Em 1945. Nas Três Barras, nos primeiros de dezembro, uma manhã chovia. Chovia; e tirava-se leite. Se sabe: as tantas tetas, a muda bucolia das zebus, nos currais cobertos para o costeio. A gente vinha, com um golpe de conhaque no copo, aparar o leite de jorro. Tudo lidavam os vaqueiros, atentos ao peso de impaciência das vacas e seus bezerros correspectivos. E vai, daí, alguém apontou: — “Aquele voltou da guerra.”
Era com efeito um “pracinha”, que figurara em Monte Castelo e Porreta Terme, e aqui recomeçava a arreação das vacas. Deixava de ter qualquer coisa especial ou remarcada. Os ombros estreitos, a morenidão, o chapéu chato? Estava “dando uma lição” numa rês, que agredia as outras com artimanhas, carecia-se de agir como quando se ordenha uma recém-parida: laçar e pôr no esteio. O ex-soldado não esquecera os atos bem que perito e ágil; ele era muito entendido.
Se sério, aquilo seria de se olhar. Voltara, fazia pouco, do a-de-lá, parciário de enormes sucessos, entre os horrores e grandezas, da Europa, da Itália — onde, semelhante ao que nas Décadas, diz Diogo do Couto, se armara “muita, e mui formosa artilheria”. Falei-lhe; aprovou, com um sim simples, vindo só às respostas, atencioso mas na singela opacidade, de quem vive e despercebe, ou tudo deu por perdido e esquecido, longe, remoto, no já dito. — A guerra? — perguntei.
— “É um abalo...”
Do vivido ou visto, que é que mais o impressionara?
— “O frio.”
E o mar?
— “É muito enfaroso...”
Pela mesma maneira, ele se desengraçava. Um outro falou: — “Ele teve medo um dia...” Nosso soldadinho não riu. Nem se fez grave. Retrucou, pelos ombros. O mover das vacas, das que pediam seus bezerros, era que ele não se tirava de rodear com a vista. Sendo que o gado manso pode dar surpresas. Mesmo ali, num quarto, no catre, estava outro vaqueiro, ferido havia dias, com uma chifrada na nádega, funda de centímetros, curada com pomada preta.
Por último, teimei:
Mas, o alemão é duro, bravo?
— “É cabeçudo...”
Não era capaz de dizer mais. E a vaca mugia, bezerros corriam, a chuva chovia. Assim.

. . .

Depois, foi em 1950, eu vinha de cruzar os Apeninos Septentrionais, cheguei em Pistoia.
No quase tramonto, quando os morros são névoa de ouro, poal de sol, hora em que os ciprestes dentro do azul trocam de personalidade. Só a seguir é que é o crepúsculo leve rosa; mas o rosa se reembebe como num mata-borrão, não volta à tona, dá outro tingir. (Poeticamente: o céu em mel de glicínias ou da cor do ciclâmen selvagem.) Sempre a limpidez; e a luz toscana, já se disse, é substância, coisa — não apenas claridade. O lugar, entre montanhas imbricadas, esfumadas em bruma. O Cemitério Militar Brasileiro — limpo, novo, cuidado — como uma plantação, como uma coleção. Aquilo em paz.
As carreiras de cruzes brancas, cada uma tendo em frente o potezinho com um cacto, 400 e tantos (e mais alguns, alemães). Ali ausentes, arregimentados, subentendidos. As flores trazidas podiam ser dadas a um, qualquer, a uma cova, igual às outras, ao acaso. Adiantei-me, sem escolha, olhei, e li, na pequena placa:

Soldado Alcides M. Rosa
Morto em 12 de dezembro de 1944.
11º R.I.

Será que estremeci e então ali estive, sem amargamento, mas no todo-sentir. Aquele, podia ser um meu parente, assim com o meu nome, e vindo de Minas Gerais. Foi demais meu parente; para mim, sob céu diferente, neste mundo, diminuído de belo. Feito se nas Três Barras.
Guimarães Rosa, in Ave, palavra

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