quinta-feira, 30 de novembro de 2017

(in)feliz

Nunca somos tão infelizes como supomos, nem tão felizes como havíamos esperado.”

La Rochefoucauld

A infância é uma gaveta fechada, numa antiga cômoda de velhas magias...

A infância é uma gaveta fechada, numa antiga cômoda de velhas magias
A regra pode-se enunciar assim: espera-se que a avó entre para descansar, depois vai-se pé ante pé ver se o avô está mesmo cochilando, na cadeira de balanço...
- ou estará MORTO?
… não, não está porque a cabeça des-ca-ca-c ... aiu num cochilo e se levantou de novo sozinho, assustado, dormindo e saiu uma língua da boca que lambeu o bigode branco e a cabeça foi, foi e des-ca-ca-ca-ca-caiu...
O corredor é a corrida geométrica natural para a fuga de uma gargalhada que não se contém. O avô é o mais engraçado dos homens, o avô é tão, tão, tão, tão, tão...
O medo se abate sobre o Descobridor. É a doçura do nome de Margarida, cujo retrato à meia-luz não entreviu.
Vinicius de Moraes

Obstáculo

Perante um obstáculo, a linha mais curta entre dois pontos pode ser a curva.”
Bertolt Brecht

A verdadeira religiosidade

O que há de mais belo na nossa vida é o sentimento do mistério. É este o sentimento fundamental que se detém junto ao berço da verdadeira arte e da ciência. Quem nunca o experimentou nem sabe já admirar-se ou espantar-se. Pode considerar-se como morto, sem luz, totalmente cego! A vivência do mistério — embora com laivos de temor — criou também a religião. A consciência da existência de tudo quanto para nós é impenetrável, de tudo quanto é manifestação da mais profunda razão e da mais deslumbrante beleza e, que só é acessível à nossa razão nas suas formas mais primitivas, essa consciência, esse sentimento, constituem a verdadeira religiosidade. Nesse sentido, e em mais nenhum, pertenço à classe dos homens profundamente religiosos. Não posso conceber um Deus que recompense e castigue os objetos da sua criação, ou que tenha vontade própria, de puro arbítrio no gênero da que nós sentimos dentro de nós. Nem tão-pouco consigo imaginar um indivíduo que sobreviva à sua morte corporal; as almas fracas que alimentem tais pensamentos fazem-no por medo ou por egoísmo ridículo. A mim basta-me o mistério da eternidade da vida, a consciência e o pressentimento da admirável elaboração do ser, assim como o humilde esforço para compreender uma partícula, por mais pequena que seja, da razão que se manifesta na natureza.
Albert Einstein, in Como vejo o mundo

A brasilidade no traço de Portinari

A Colheita de feijão (1957), de Cândido Portinari

Premonitório

Do fundo de Pernambuco, o pai mandou-lhe um telegrama:

Não saia casa 3 outubro abraços.

O rapaz releu, sob emoção grave. Ainda bem que o velho avisara: em cima da hora, mas avisara. Olhou a data: 28 de setembro. Puxa vida, telegrama com a nota de urgente, levar cinco dias de Garanhuns a Belo Horizonte! Só mesmo com uma revolução esse telégrafo endireita. E passado às sete da manhã, veja só; o pai nem tomara o mingau com broa, precipitara-se na agência para expedir a mensagem.
Não havia tempo a perder. Marcara encontros para o dia seguinte, e precisava cancelar tudo, sem alarde, como se deve agir em tais ocasiões. Pegou o telefone, pediu linha, mas a voz de d. Anita não respondeu. Havia tempo que morava naquele hotel e jamais deixara de ouvir o “pois não” melodioso de d. Anita, durante o dia. A voz grossa, que resmungara qualquer coisa, não era de empregado da casa; insistira: “como é?”, e a ligação foi dificultosa, havia besouros na linha. Falou rapidamente a diversas pessoas, aludiu a uma ponte que talvez resistisse ainda uns dias, teve oportunidade de escandir as sílabas de arma virumque cano, disse que achava pouco cem mil unidades, em tal emergência, e arrematou: “Dia 4 nós conversamos”. Vestiu-se, desceu. Na portaria, um sujeito de panamá bege, chapéu de aba larga e sapato de duas cores levantou-se e seguiu-o. Tomou um carro, o outro fez o mesmo. Desceu na praça da Liberdade e pôs-se a contemplar um ponto qualquer. Tirou do bolso um caderninho e anotou qualquer coisa. Aí, já havia dois sujeitos de panamá, aba larga e sapato bicolor, confabulando a pequena distância. Foi saindo de mansinho, mas os dois lhe seguiram na cola. Estava calmo, com o telegrama do pai dobrado na carteira, placidez satisfeita na alma. O pai avisara a tempo, tudo correria bem. Ia tomar a calçada quando a baioneta em riste advertiu: “Passe de largo”; a Delegacia Fiscal estava cercada de praças, havia armas cruzadas nos cantos. Nos Correios, a mesma coisa, também na Telefônica. Bondes passavam escoltados. Caminhões conduziam tropa, jipes chispavam. As manchetes dos jornais eram sombrias; pouca gente na rua. Céu escuro, abafado, chuva próxima.
Pensando bem, o melhor era recolher-se ao hotel; não havia nada a fazer. Trancou-se no quarto, procurou ler, de vez em quando o telefone chamava: “Desculpe, é engano”, ou ficava mudo, sem desligar. Dizendo-se incomodado, jantou no quarto, e estranhou a camareira, que olhava para os móveis como se fossem bichos. Deliberou deitar-se, embora a noite apenas começasse. Releu o telegrama, apagou a luz.
Acordou assustado, com golpes na porta. Cinco da manhã. Alguém o convidava a ir à Delegacia de Ordem Política e Social. “Deve ser engano.” “Não é não, o chefe está à espera.” “Tão cedinho? Precisa ser hoje mesmo? Amanhã eu vou.” “É hoje e é já.” “Impossível.” Pegaram-lhe dos braços e levaram-no sem polêmica. A cidade era uma praça de guerra, toda a polícia a postos. “O senhor vai dizer a verdade bonitinho e logo” — disse-lhe o chefe. — “Que sabe a respeito do troço?” “Não se faça de bobo, o troço que vai estourar hoje.” “Vai estourar?” “Não sabia? E aquela ponte que o senhor ia dinamitar mas era difícil?” “Doutor, eu falei a meu dentista, é um trabalho de prótese que anda abalado. Quer ver? Eu tiro.” “Não, mas e aquela frase em código muito vagabundo, com palavras que todo mundo manja logo, como arma e cano?” “Sou professor de latim, e corrigi a epígrafe de um trabalho.” “Latim, hem? E a conversa sobre os cem mil homens que davam para vencer?” “São unidades de penicilina que um colega tomou para uma infecção no ouvido.” “E os cálculos que o senhor fazia diante do palácio?” Emudeceu. “Diga, vamos!” “Desculpe, eram uns versinhos, estão aqui no bolso.” “O senhor é esperto, mas saia desta. Vê este telegrama? É cópia do que o senhor recebeu de Pernambuco. Ainda tem coragem de negar que está alheio ao golpe?” “Ah, então é por isso que o telegrama custou tanto a chegar?” “Mais custou ao país, gritou o chefe. Sabe que por causa dele as Forças Armadas ficaram de prontidão, e que isso custa cinco mil contos? Diga depressa.” “Mas, doutor…” Foi levado para outra sala, onde ficou horas. O que aconteceu, Deus sabe. Afinal, exausto, confessou: “O senhor entende conversa de pai pra filho? Papai costuma ter sonhos premonitórios, e toda a família acredita neles. Sonhou que me aconteceria uma coisa no dia 3, se eu saísse de casa, e telegrafou prevenindo. Juro!”.
Dia 4, sem golpe nenhum, foi mandado em paz. O sonho se confirmara: realmente, não devia ter saído de casa.
Carlos Drummond de Andrade, in 70 historinhas

Euclides da Cunha: um iluminado

Para Renan de Freitas Pinto

Um dos mitos que alguns escritores inventam para si mesmos é o do leitor precoce. Antes mesmo de bater uma pelada ou de brincar de cabra-cega, certas crianças — meninos e meninas letrados — já leram trechos de Proust ou de uma tragédia grega. Quanta precocidade! Melhor viver intensamente a infância e a juventude, e ler os clássicos no momento adequado.
Não fui um leitor precoce. Mas, por obrigação, tive de ler capítulos d’ Os sertões antes dos quinze anos de idade. Foi literalmente um castigo, um ato de punição disciplinar de um professor de literatura, admirador do Divino Marquês. Ainda bem que no sorteio dos capítulos que seriam lidos e fichados tirei a última parte do livro, cuja leitura me fascinou. Nessas páginas d’ Os sertões há grandes personagens de uma batalha extremamente desigual. O que aconteceu em Canudos foi uma guerra de extermínio. Hoje, seria considerado um verdadeiro “genocídio”, como assinalou Walnice Nogueira Galvão num artigo publicado no Estado de S. Paulo (Cultura, 26/07/2009).
Euclides, republicano convicto, percebeu uma das faces mais bárbaras e atrozes da República, que, no entanto, usava a máscara da civilização. Positivista, crente no progresso, na justiça e nos avanços da ciência, o escritor viu nos seringais do Purus “a mais criminosa organização do trabalho que engenhou o mais desaçamado egoísmo”. Nesse mesmo artigo (“Terra sem história”), ressaltou a “urgência de medidas que salvem a sociedade obscura e abandonada: uma lei do trabalho que nobilite o esforço do homem; uma justiça austera que lhe cerceie os desmandos…”
Um século depois, tempo suficiente para que a República salvasse a sociedade obscura e abandonada, não sei o que Euclides diria sobre a prostituição infantil, milhões de trabalhadores sem carteira assinada, trabalho escravo, o massacre do Carandiru, o assassinato de Chico Mendes e outros líderes de seringueiros, e a impunidade de tantos políticos indecorosos.
Sem dúvida Euclides foi um gênio verbal. Para o crítico Antonio Candido, a força expressiva da linguagem, aliada a uma intuição poderosa, fazem do escritor um iluminado, muito mais que um sociólogo. Augusto Meyer notou que Euclides “dramatiza tudo, a tudo consegue transmitir um frêmito de vida e um sabor patético”. E Gilberto Freyre apontou no estilo euclidiano a “obsessão quase bizantina do escultural […] e da tendência ao monumentalismo que quase nunca o abandona”. De fato, algumas das passagens mais notáveis d’Os sertões evocam combatentes e animais imobilizados em pose patética depois da morte, como se fossem estátuas sinistras no palco macabro da batalha.
Não menos comovente é o texto “Judas-Asvero”, do livro À margem da História, que reúne seus ensaios amazônicos. Nesse belo relato, a desforra dos seringueiros do Alto Purus — uma vingança contra Deus e o mundo — é materializada numa escultura moldada com gestos inventivos por mãos de artistas anônimos. “Judas-Asvero” é um ponto alto da prosa euclidiana, pois nele estão ausentes o determinismo climático e as teorias raciais, dois anacronismos compreensíveis na obra de um escritor brasileiro do século XIX.
Euclides relutou em publicar “Judas-Asvero” por considerá-lo pitoresco demais. Coelho Neto, que convenceu o amigo a mudar de ideia, teria dito: “Isto é uma das melhores coisas que você escreveu”.
Infelizmente a linha reta da engenharia e do positivismo, e a crença cega no progresso e na “civilização” turvaram um pouco a visão e a análise histórico-social de Euclides sobre o Brasil. Uma dose de descrença e desconfiança faz bem quando se luta por uma “justiça austera” e por uma sociedade mais justa e civilizada. As tenebrosas transações (como diz uma canção de Chico Buarque) seguem seu curso impunemente, escudadas pela imunidade de tantos representantes dos poderes da República.
Joseph Conrad, contemporâneo de Euclides, foi mais reticente quanto às grandes conquistas da ciência; foi também menos eufórico com a ideia de civilização, e pouco entusiasmado com a perspectiva de uma sociedade mais justa. Ele, que escreveu uma das obras mais críticas aos horrores do colonialismo europeu na África, sabia que a nobreza da alma humana era uma quimera, que os interesses econômicos e políticos enterram as boas intenções, e que o coração é, muitas vezes, envolto por trevas.
Numa de suas Notas sobre vida e literatura, Conrad escreveu: “A vida e a arte seguem trilhas obscuras e não vão enveredar pela região luminosa da ciência”.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

quarta-feira, 29 de novembro de 2017

Unir

Mais fácil é unir distâncias, que casar opiniões e entendimentos.”
Padre Antônio Vieira

Flor do Medo / Melhor Lugar (Jorge Vercillo / Djavan), com Pedro Amorim e Juliana Reis

Nova Iorque

Karl desconhece a eletricidade e, neste momento, com o corpo ainda ofendido, sabe apenas que não a quer voltar a ter dentro de si. Que o prodígio se detenha por luzes e máquinas, longe das entranhas e dos músculos que tão bem passam sem confusões adicionais.
Ao longo da tarde vai sentido ainda espasmos: nas pernas, nos braços, no pescoço. Lentamente estes vão-se tornando mais raros e, a meio da tarde, já quase não se fazem sentir, apenas o braço direito continua a fugir-lhe ao controlo quando menos espera; parece-lhe até que começou a tremer mais, como se os espasmos tivessem diminuído de intensidade e aumentado de frequência, tornando-se contínuos. As últimas janelas são limpas com a mão esquerda, que a outra não lhe merece confiança.
Pensa em queixar-se ao homem do fato e pedir-lhe mais dinheiro por danos aos nervos, mas não o faz, de resto é pouco provável que o encontre, neste momento será já outra a plateia e outro o vendedor.
Sente-se levemente ingênuo por arriscar tanto por um dólar, depois apercebe-se de que trabalha a oitenta metros do solo e há quem pesque em alto mar, quem coma do pugilato e quem escolha a vida militar. As cidades estão cheias de gente que arrisca muito por pouco e Nova Iorque parece um congresso.
Quando acaba de limpar a última janela, detém-se por alguns momentos a olhar a cidade lá em baixo. Dali sente-se capaz de pensar coisas novas, de ver longe e de descobrir significados até aí ocultos. Na verdade nada disso acontece, talvez por não estar habituado a pensar coisas novas, talvez porque Nova Iorque não permita que se pense muito.
Entra então no edifício e arruma as suas coisas. É sábado e tem algum dinheiro no bolso, apetece-lhe divertir-se, foi uma semana em que se manteve vivo e a trabalhar, irá procurar algum prazer que possa trocar por moedas. Comer, beber, uma mulher, talvez, que mais há?
Entra no elevador e vê-o encher-se a cada piso. São lugares democráticos os elevadores, no mesmo espaço juntam-se fatos-macaco e casacos de bom corte e, apesar da diferença, são só pano que separa a pele do trabalho. O cheiro é também diferente e a colônia dos senhores, misturada com o tabaco de cachimbo, lembram-lhe o pai e a vida que deixou.
Fora, as ruas vão cheias de gente livre, há diversas correntes que se entrecruzam e vão desaguar em pontos distintos da cidade. Há quem se deixe levar para casa, para os bairros residenciais e os quarteirões de imigrantes, e quem vá atrás das luzes como insetos que se querem queimar. Enchem-se os restaurantes, os cabarés, os bares, as tascas clandestinas, os casinos ilegais e os bordéis. Também Karl andará atrás das luzes, ainda inseguro de quanto está disposto a queimar-se. O braço incomoda-o, será preciso adormecê-lo a qualquer custo.
Nuno Camarneiro, in No meu peito não cabem pássaros

Bilo-bilo

O idiota estilo bilo-bilo com que os adultos se dirigem às crianças, isso deve chateá-las enormemente, como a um poeta quando abordado com assuntos “poéticos”.
Mário Quintana, in A vaca e o hipogrifo

Qunado descobri sobre "aquilo"


Eu estava na quarta série quando descobri sobre aquilo. Eu era provavelmente o último a saber, porque continuava não falando com os outros. Um garoto se aproximou de mim enquanto eu vagava durante o recreio.
Você não sabe como aquilo acontece? – perguntou.
Aquilo o quê?
Foder.
O que é isso?
Sua mãe tem um buraco... – ele juntou o polegar e o indicador da mão direita e fez um círculo – e seu pai tem um pinto... – pegou o indicador esquerdo e começou a enfiá-lo para frente e para trás dentro do buraco. – Então o pinto do seu pai espirra um suco e às vezes sua mãe tem um bebê e às vezes não.
Deus faz os bebês – eu disse.
Assim como a merda – disse o garoto e se afastou.
Era difícil para mim acreditar. Quando o recreio ter minou, me sentei na sala de aula e fiquei pensando no assunto. Minha mãe tinha um buraco e meu pai tinha um pinto que espirrava suco. Como eles podiam ter coisas como essas e continuar caminhando como se tudo fosse normal, conversando sobre banalidades, e então fazer aquilo e não contar nada para ninguém? Sentia realmente vontade de vomitar quando encarava a ideia de ter começado a partir do suco do meu pai.
Naquela noite, após as luzes se apagarem, fiquei acordado na cama, escutando. Com certeza, comecei a ouvir sons. A cama deles começou a ranger. Podia ouvir o barulho das molas. Levantei-me e fui, na ponta dos pés, até junto à porta do quarto deles e fiquei escutando. A cama seguia produzindo ruídos. Então parou. Corri de volta pelo corredor para dentro do meu quarto. Ouvi minha mãe entrar no banheiro. Escutei a descarga e depois seus passos se afastando.
Que coisa terrível! Não importava que fizessem aquilo em segredo! E pensar que todo mundo fazia isso! Os professores, o diretor, todo mundo! Era algo realmente estúpido. Então pensei em fazê-lo com Lila Jane, e a estupidez que era evidente já não me pareceu tão evidente assim.
No dia seguinte, durante a aula, passei o tempo todo com isso na cabeça. Olhava para as garotinhas e me imaginava fazendo com elas. Faria com todas elas e teríamos bebês, eu encheria o mundo de caras como eu, grandes jogadores de beisebol, marcadores de home runs. Naquele dia, logo antes da aula terminar, a professora, sra. Westphal, disse:
Henry, você poderia ficar mais um pouco?
A sineta tocou, e as outras crianças foram embora. Fiquei sentado e esperei. A sra. Westphal corrigia uns papéis. Pensei: talvez ela queira fazer comigo. Me imaginei erguendo o vestido dela e olhando para o seu buraco.
Tudo bem, sra. Westphal, estou pronto.
Ela ergueu os olhos das folhas.
Está certo, Henry. Em primeiro lugar, apague todos os quadros-negros. Depois leve os apagadores até a rua e tire o pó deles.
Fiz o que me mandou, então voltei a sentar na minha classe. A sra. Westphal continuava lá, corrigindo os papéis. Ela estava com um vestido azul apertado, grandes argolas douradas nas orelhas, tinha um nariz pequeno e usava óculos sem armação. Esperei e esperei. Então, eu disse:
Sra. Westphal, por que a senhora me manteve aqui depois da aula?
Ergueu o rosto e me encarou. Seus olhos eram verdes e profundos.
Mantive-o até mais tarde porque às vezes você é mau.
Ah, é? – sorri.
A sra. Westphal me olhou. Tirou seus óculos e continuou me encarando. Suas pernas estavam ocultas pela mesa. Eu não podia ver seu vestido.
Você estava muito desatento hoje, Henry.
É?
E não fale comigo desse jeito. Você está se dirigindo a uma dama!
Oh, claro...
Não seja insolente comigo!
Como a senhora quiser.
Ela se levantou e saiu detrás de sua mesa. Caminhou por entre as classes e sentou-se sobre a mesa à minha frente. Tinha pernas maravilhosas, longas, cobertas por meias de seda. Sorriu para mim, esticou uma das mãos e tocou num dos meus pulsos.
Seus pais não lhe dão muito amor, não é verdade?
Não preciso desse tipo de coisa – respondi.
Henry, todos precisam ser amados.
Não preciso de nada.
Pobre garoto.
Ficou de pé, veio até minha classe e tomou devagar minha cabeça entre suas mãos. Curvou-se e me estreitou contra os seios. Estiquei-me e enlacei suas pernas.
Henry, você precisa parar de brigar com todo mundo! Queremos ajudá-lo.
Agarrei as pernas da sra. Westphal com mais força.
Tudo bem – eu disse –, vamos trepar!
O que você disse?
Eu disse vamos trepar!
Olhou-me por um longo tempo.
Henry, nunca vou dizer para ninguém o que você me disse, nem para o diretor, nem para seus pais, para ninguém. Mas eu nunca mais, nunca mais quero que você me diga isso outra vez, entende?
Entendo.
Tudo bem. Você pode ir para casa agora.
Levantei e caminhei em direção à porta. Quando a abri, a sra. Westphal disse:
Boa tarde, Henry.
Boa tarde, sra. Westphal.
Segui pela rua pensando no acontecido. Senti que ela estava a fim de trepar, mas tinha medo por eu ser jovem demais para ela, medo de que meus pais e o diretor pudessem descobrir. Tinha sido excitante ficar sozinho com ela na sala vazia. Essa coisa de trepar era bacana. Dava às pessoas mais coisas em que pensar.
Eu precisava cruzar uma grande avenida para chegar em casa. Peguei a faixa de pedestres. Subitamente, um carro veio para cima de mim. Não diminuiu a velocidade. Vinha selvagemente desgovernado. Tentei sair do caminho, mas o carro parecia me seguir. Vi os faróis, as rodas, o pára-choque. O carro me acertou e depois foi tudo escuridão…
Charles Bukowski, in Misto-quente

terça-feira, 28 de novembro de 2017

Retrato do artista quando coisa

Borboletas já trocam as árvores por mim.
Insetos me desempenham.
Já posso amar as moscas como a mim mesmo.
Os silêncios me praticam.
De tarde um dom de latas velhas se atraca
em meu olho
Mas eu tenho predomínio por lírios.
Plantas desejam a minha boca para crescer
por de cima.
Sou livre para o desfrute das aves.
Dou meiguice aos urubus.
Sapos desejam ser-me.
Quero cristianizar as águas.
Já enxergo o cheiro do sol.
Manoel de Barros

A arte provocante de Sidney Amaral

A família (2012), de Sidney Amaral

Não lemos o mundo, os outros

Falamos em ler e pensamos apenas nos livros, nos textos escritos. O senso comum diz que lemos apenas palavras. Mas a ideia de leitura aplica-se a um vasto universo. Nós lemos emoções nos rostos, lemos os sinais climáticos nas nuvens, lemos o chão, lemos o Mundo, lemos a Vida. Tudo pode ser página. Depende apenas da intenção de descoberta do nosso olhar. Queixamo-nos de que as pessoas não leem livros. Mas o déficit de leitura é muito mais geral. Não sabemos ler o mundo, não lemos os outros.
Vale a pena ler livros ou ler a Vida quando o ato de ler nos converte num sujeito de uma narrativa, isto é, quando nos tornamos personagens. Mais do que saber ler, será que sabemos, ainda hoje, contar histórias? Ou sabemos simplesmente escutar histórias onde nos parece reinar apenas silêncio?
Mia Couto, in E se Obama fosse africano?

RSVP - Ideia para uma peça

No palco uma mesa posta para 13 pessoas. Copos, pratos e talheres rústicos, grossas velas toscas e na frente de cada lugar um cartãozinho com o nome de quem deve sentar ali. Ninguém no palco.
Da esquerda aparece um mordomo seguido de um casal elegantemente vestido. O casal entra em cena visivelmente inseguro, olhando para todos os lados. O mordomo anuncia que os outros não demorarão a chegar e diz para o casal ficar à vontade. Se quiserem, podem beber água da moringa. O mordomo sai de cena. O casal se entreolha.
Ela diz, num cochicho:
Onde nós estamos?
Ele, cochichando também:
E eu sei?
Olhe o convite de novo.
O homem tira o convite do bolso do smoking e o examina pela décima vez. O convite ainda diz a mesma coisa.
Só a data, a hora, o endereço e, embaixo, “RSVP”.
Esse “RSVP” é que é a chave de tudo. Deve ser as iniciais de alguma coisa.
Mas do quê?
— “Reunião dos...” Sei lá.
Podemos estar no jantar errado.
Mas o mordomo viu o convite e nos deixou entrar.
Olhe os cartõezinhos para ver se os nossos nomes estão aí.
Ela (lendo):
— “João”, “Tiago”, “Pedro”...
Ele (lendo):
— “Mateus”, “Simão”, “Judas”...
Viu? Nossos nomes não estão aqui. Estamos no lugar errado.
— “Jesus”!
Que foi?
Neste cartãozinho. Está escrito “Jesus”!
Lentamente, eles se dão conta do que isto significa. Fazem a volta na mesa, um para cada lado, lendo os cartõezinhos outra vez. Se reencontram no meio da mesa.
Aí está — diz ele. — Jesus ao lado de Pedro.
Os dois se encaram, de olhos arregalados e boca aberta. Finalmente ele consegue falar.
As letras...
Que letras?
Na cruz. Em cima da cabeça de Jesus Cristo. Não eram...
RSVP!
Ele toma uma decisão:
Vamos embora.
Espera. E se a gente ficasse para...
Está maluca? Isto aqui acaba mal. Não vamos nos meter nesta confusão.
Mas...
Olhe, o jantar vai ser horrível, acredite. Só pão ázimo, vinho barato e conversa de homem. Você seria a única mulher. Iria se sentir deslocada.
Sim, mas...
E eles obviamente não estão nos esperando. Pense no vexame.
A mulher se convence. Tudo, menos uma gafe social. Os dois saem furtivamente do palco.
Luís Fernando Veríssimo, in Diálogos impossíveis

Boa Noite (Djavan) - 2GROOVE

Os galos da tardinha

Assanhamento de cigarras, próprio à minha janela, no dia 17 de janeiro, de um ano que mais não sei. À tarde, às 6 e 30, de repente, todas comparecem a se assar. As cigarras se descascam, novinhas. E como que cantam, em hirta mentira, estridem. Longo tempo azucrinam, maquinazinhas; penteiam algo. Eu tinha de ouvi-las, no consciencio.
Em crescendo. Em vários níveis. Tantos ésses, no febril! Cada uma é um ponto de laminação carretel, vapor, fervor, orifício. Muitas se acertam, se acirram, insistidíssimas. Umas são mais secas. Calam-se a um tempo, repentinas. Cada uma despejou seu chio, parou, pôs-se a rolha. Outras, longas, retomam-se. Aquele concerto se aproxima. Elas são os galos da tardinha. São ondas. (As de longe: remoinho; teimosia. As perto: é mesmo zizio.) Não cantam, nem gritam entre-dentes, nervosinhas. Sabe-se só os machos é que fretinem — o zinir, o frinir, o confricar dos abdomes membranosos: o cio, cio, cio.
Depois, não sei porque, ficou uma, apenas, cega-rega, a bolha de seu canto rebentava. Ela, atrás de mim, dispara: é uma cigarra suíça, e nova. Para zoar seu sobre si, precisa de se dar muito motor. Desmancha a barriga, de barulhar. É uma cigarra trissílaba. É uma cigarra frigideira. Mas paroxística. Uma cigarra que até cacareja. Quando ela para, dói na gente. Vai-se até ao coraçãozinho dela, dentro de um susto.
Deve ser uma conhecida, que há dias salvei das patas da gata. Antes dizer: Xizinha já a dentara, abocanhada. E como ela grinchava, de horror, doida fortemente, estridulantérrima. Era um alarme terrível. Nenhum bicho se defende mais braviamente a brados, nem pede tão endiabrado socorro, quando nessas inóspitas e urgentes condições. Vem de sua notória longevidade esse medo frenético de morrer?

Livrando-a dos leves dentes de Xizinha, tive-a um instante, fremente, na mão. Essa era como as outras: a grossa cigarra de asas escritas, asas nervosas, as de cima mais compridas, manchas pretas nas costas, a cabeça larga, curta, vertical — feia, bela, horrenda. Cigarra de ferro, renha cigarra: como a beleza de teus sons te envolve!
Nem me agradeceu. Perguntei, repreendendo-a:
Por que você grita tão exagerada?
E:
O Senhor não Acha que a Vida Mesma é que é um Exagero? — foi sua terminante resposta.
Guimarães Rosa, in Ave, palavra

segunda-feira, 27 de novembro de 2017

Parecia uma coisa impossível

John Bante foi submetido a mais uma operação, outra operação. Haviam começado o processo todo ao lhe cortarem um pé, depois o outro. Depois foram seguindo pernas acima. Creio que ele teria morrido caso não se submetesse a esses procedimentos, mas esta escolha não me parecia muito melhor do que a primeira.
Mary me ligou dizendo que ele estava de volta em casa e que gostariam que fôssemos jantar com eles.
Vamos beber um pouco de vinho – ela me disse. Marcamos uma data.
Quando chegamos, Bante já estava sentado à mesa. Estava na cadeira de rodas. Aquilo foi muito mais agradável do que vê-lo estendido sob um lençol. Seu filho, Harry, e a mulher dele, Nana, também tinham comparecido. Mary nos apresentou. Sentamos e Mary nos serviu de vinho.
Vou tomar um cálice com você, Chinaski – disse John.
É uma honra...
Erguemos as taças.
Que tal o gosto, Chinaski?
Está ótimo, Bante.
Harry e Nana têm lido seus livros. Agora estão viciados.
Recebi meus ensinamentos de um mestre, um tal John Bante.
Você teria conseguido, de um jeito ou de outro.
Tomei emprestado parte do seu estilo. Mas, diabos, nossos conteúdos são diferentes, John. Você escreve como uma boa alma; eu tenho um lado mais cretino.
Você está certo. Tome um pouco mais de vinho. Mary, cuide para que Chinaski seja bem servido.
Em seguida, Mary, auxiliada por Nana, trouxe o jantar. Nana havia feito a comida. O jantar foi preparado com capricho. Comemos sem alarde, fazendo breves comentários. Então terminamos e mais vinho foi servido.
Vou tomar mais um cálice com você, Chinaski! Esta é minha grande noite!
Mas tem que ser o último mesmo – disse Mary.
Ouvi dizer que vocês circulam ali pelo Musso’s – disse John.
Costumávamos ir lá uma vez por semana quando morávamos para aqueles lados – disse Alta. – Agora que estamos em San Pedro, não vamos tão seguido.
Vocês deviam tentar o Chasen’s – disse Bante.
Muito chique para mim – admiti.
John estava na segunda taça de vinho. Era como se ressurgisse. Achei isso ótimo. Eu podia sentir a vida retornando ao seu corpo.
Eu ia muito ao Musso’s. Certo dia, estava sentado numa mesa quando meu escritor favorito entrou. Big Red. Você sabe quem era Big Red?
Não...
Sinclair Lewis.
Jesus Cristo!
Mas eu não disse mais nada além disso. Sinclair Lewis não estava na minha lista.
Ei, o que é isso que você está fumando? Tem um cheiro engraçado!
É um cigarro que vem da Índia. Não tem nicotina, mas vai muito bem com vinho.
Posso fumar um?
Olhei para Mary. Ela me acenou um “sim”. Acendi um e coloquei-o em sua mão. Alta fez a volta com um cinzeiro.
Aqui está o cinzeiro, John. Consegue sentir?
Sim, obrigado. Como eu ia dizendo, estava lá sentado e Big Red entrou. Veja bem, era como enxergar um Deus, está entendendo?
Sim, claro – respondi.
O que importa é que ele sentou numa mesa com essas duas mulheres e eles fizeram o pedido. Eu era só um garoto, sabe, e estava ali... sentado no mesmo ambiente que Sinclair Lewis... Trouxeram-lhe uma garrafa de vinho e ele e as mulheres beberam. Ali estava ele, sentado tão perto, Big Red. Parecia uma coisa impossível. Não queria incomodá-lo. Tentei me conter, mas não consegui. Eu estava lá sozinho. Tinha um caderno comigo e fingia trabalhar num roteiro de cinema. Mas odiei aquilo. Havia muitas páginas em branco. Arranquei uma delas e caminhei na direção de Sinclair Lewis. Parei diante de sua mesa. Ele falava com uma das mulheres... Acho que o cigarro indiano apagou...
Alta se levantou e reacendeu o cigarro com o isqueiro.
Qualquer coisa apagam, sabe, é que não têm produtos químicos.
Obrigado, Alta... Mas como eu ia dizendo, fiquei ali parado e disse: “Me perdoe, sr. Lewis...” Ele olhou para cima. As mulheres também me olharam. “Sou escritor. Meu nome é John Bante. Há muito tempo que o senhor é meu escritor favorito. Não quero, de modo algum, incomodá-lo, mas aqui estou. Gostaria de saber se o senhor me daria seu autógrafo nesta folha de papel?”
Houve uma pausa. John tomou o último gole de seu vinho. Era como se ele estivesse de volta ao Musso’s, plantado diante da mesa de Big Red. Então continuou:
Sinclair Lewis agiu como se eu não estivesse ali. Ignorou o pedaço de papel que eu lhe estendia e começou a conversar com as mulheres novamente.
Mas que filho da puta!
Voltei para a minha mesa e fiquei pensando no que tinha acontecido. Quanto mais eu pensava, pior me sentia. Big Red me dera um gelo. Chamei o garçom e paguei minha conta. Então voltei até a mesa de Lewis. Ele olhou para mim. “Escute, seu merda, sou publicado pela mesma editora que você. Talvez L. H. Renkin ficasse feliz em saber o cretino que você é!” Então caminhei em direção à saída. Dei uma olhada para trás e vi que ele se levantava da mesa para me seguir. Saí em direção à rua de trás, pulei no meu carro e me escondi. Vi quando ele surgiu correndo, à minha procura. Ele parecia aterrorizado. Mas não tinha jeito de ele me achar. Ficou parado por algum tempo, depois voltou para dentro. Tinha feito ele se borrar nas calças!
Charles Bukowski, in Pedaços de um caderno manchado de vinho