domingo, 22 de outubro de 2017

Num momento de fraqueza, Ulrich arranja outra amante

Certa manhã, Ulrich chegou em casa em péssimo estado. Suas roupas pendiam rasgadas, teve de fazer compressas molhadas na cabeça ferida, faltavam-lhe relógio e carteira. Não sabia se os três homens com quem brigara os tinham roubado ou se algum silencioso benfeitor os pegara quando ele estava desmaiado no asfalto. Deitou-se na cama, e enquanto o corpo abatido se sentia abrigado e cuidado, Ulrich refletiu mais uma vez sobre toda a aventura.
De repente, tinham aparecido três sujeitos: talvez tivesse roçado num deles na rua, numa hora tardia e solitária, pois estava distraído com outras ideias; mas mesmo assim, aqueles rostos, contorcidos à luz do lampião, expressavam uma raiva mais antiga. Ele cometera então um erro. Deveria ter recuado imediatamente, como quem tem medo, mas empurrando com as costas o sujeito que se metera atrás dele, ou enfiando o cotovelo em seu estômago, tentando ao mesmo tempo fugir, pois contra três homens fortes não se luta. Em vez disso, hesitara um instante. Era a idade: trinta e dois anos. A essa altura, hostilidade e amor exigem mais tempo. Ele não acreditava que os três rostos que o encaravam na noite com raiva e desprezo quisessem apenas seu dinheiro, imaginou que era ódio, ódio que confluíra contra ele e se personificara; enquanto os malandros o insultavam com palavras grosseiras, pensou que podiam nem ser malandros mas cidadãos como ele, apenas bêbados e liberando suas inibições, e que, notando o vulto dele ao passar, descarregavam sobre ele o ódio que está sempre em todo mundo à espera de qualquer pessoa estranha, como uma tempestade iminente no ar. Ele próprio já sentira algo parecido. Hoje em dia, muitíssimas pessoas se sentem numa lamentável oposição a muitíssimas outras. É um traço fundamental de nossa cultura o homem desconfiar profundamente de pessoas fora do seu próprio meio; portanto, não só um ariano considera um judeu um ser incompreensível e inferior, mas um jogador de futebol sente o mesmo diante de um pianista. Afinal, cada coisa só existe dentro de seus limites, afirmando-se como ato relativamente hostil contra o ambiente; sem Papa não teria havido Lutero, sem pagãos não teria havido Papa; por isso, não se pode negar que a mais intensa inclinação do homem por seus irmãos se baseie na repulsa deles.
Ulrich não pensou em tudo isso tão minuciosamente, é claro; mas reconhecia aquela vaga hostilidade que inunda nossa civilização; e quando ela de repente se cristaliza em três desconhecidos que atacarão como raios e trovoadas, sumindo depois para sempre, quase nos sentimos aliviados.
Mesmo assim, em se tratando de três malandros, a reflexão parece ter sido um tanto excessiva. Pois quando o primeiro atacou, e voou de volta porque Ulrich se adiantara dando-lhe um soco no queixo, teria sido necessário eliminar imediatamente o segundo; mas este foi apenas roçado pelo punho de Ulrich, a quem um golpe vindo de trás quase rachou o crânio. Ele caiu de joelhos, foi agarrado, conseguiu levantar-se com força quase sobrenatural, como em geral acontece depois do primeiro choque, esmurrou uma massa indefinida de corpos estranhos e acabou abatido por punhos que lhe pareciam crescer cada vez mais.
Constatado o erro que cometera, e que se limitava ao campo esportivo, como quando se dá um salto curto demais, Ulrich, com nervos excelentes, adormeceu tranquilamente, atraído pelas mesmas espirais flutuantes da inconsciência que o tinham engolido quando fora derrubado.
Ao acordar, certificou-se de que os ferimentos não eram graves, e refletiu de novo sobre o acontecido. Uma briga sempre deixa uma sensação ruim, por assim dizer de uma intimidade precipitada, e Ulrich sentiu que, mesmo tendo sido atacado, não se portara adequadamente. Mas adequar-se a quê? Junto das ruas onde a cada trezentos passos um policial pune a menor infração da ordem, há outras que exigem força e atenção, como uma floresta virgem. A humanidade produz bíblias e armas, tuberculose e tuberculina. É uma democracia com reis e aristocratas; constrói igrejas, mas constrói universidades que as combatem; transforma mosteiros em casernas, mas nas casernas coloca capelães militares; naturalmente também coloca nas mãos de bandidos mangueiras de borracha recheadas de chumbo, para atormentarem outras pessoas, e depois prepara cobertores macios para as vítimas desses maus-tratos, como as cobertas que agora envolviam Ulrich com carinho e proteção.
Tudo isso é o conhecido fato dos paradoxos, da incoerência e imperfeição da vida, que nos fazem rir ou chorar. Ulrich porém não era assim. Odiava aquela mescla de desapego e exagerado apego à vida, com que suportamos suas contradições e meias- verdades, como uma tia solteirona tolera as má-criações de um jovem sobrinho. Mas não saltou da cama ao ver que ficar deitado nela era tirar vantagem da desordem nas relações humanas; pois evitar pessoalmente o mal e fazer o bem, mas não se importar com a ordem geral é, em muitos sentidos, um compromisso precipitado com a consciência à custa da causa, um curto-circuito, uma fuga para o mundo particular. Depois daquela involuntária experiência, Ulrich chegou a pensar que valia muito pouco eliminarem-se armas, ou reis, e reduzir a ignorância e maldade humanas com o progresso; pois as objeções e maldades são sempre substituídas por outras, como se uma perna do mundo escorregasse para trás cada vez que a outra avança. Seria preciso entender a causa e mecanismo secreto desse processo! Isso seria mais importante do que ser um bom homem segundo princípios breve superados; assim, em assuntos de moral Ulrich preferia o serviço no estado-maior ao heroísmo cotidiano da prática do bem.
Recordou mais uma vez a continuação daquela aventura noturna. Quando voltara a si depois da briga de final infeliz, um táxi parará à beira da calçada; o motorista tentara erguer pelos ombros o estranho ferido, e uma dama de expressão angelical inclinara-se sobre ele. Nesses momentos em que a consciência volta de muito fundo, tudo nos parece um livro de contos de fadas; mas logo o desmaio cedera à lucidez, e a presença daquela mulher que se interessava por ele bafejou Ulrich, reanimando-o como água-de-colônia; ele logo viu que não estava muito machucado, e tentou pôr-se de pé da melhor maneira possível. Não conseguiu isso logo como desejava, e a dama ofereceu-se, preocupada, para levá-lo a algum lugar onde encontrasse ajuda. Ulrich pediu que o levassem para casa, e como ainda parecesse desamparado e confuso, a dama consentiu. No carro ele se recuperara depressa. Sentia nela uma presença maternal, uma doce nuvem de romântica solicitude, em cujo calor agora começavam a formar-se os pequenos cristais de gelo da dúvida e do medo de um ato irrefletido, enquanto ele voltava a ser um homem, e os cristaizinhos enchiam o ar, macios como neve caindo. Contou sua experiência, e a bela mulher, só um pouco mais jovem do que ele, portanto com talvez trinta anos, lamentou a brutalidade das pessoas, e sentiu uma pena imensa.
Naturalmente Ulrich começou a justificar vivamente o que acontecera e declarou à supreendida beldade maternal que brigas não podiam ser avaliadas segundo seu resultado. O encanto delas residia no fato de que em um pequeno lapso de tempo é preciso agir com uma rapidez que habitualmente não tem lugar na vida burguesa e, guiado por sinais quase imperceptíveis, executar tantos movimentos variados, violentos, mas ainda assim exatos, que é totalmente impossível controlá-los com a consciência. Ao contrário, qualquer esportista sabe que já alguns dias antes de uma competição é preciso parar com o treinamento, para que os músculos e nervos possam fazer um último acordo entre si, sem que a vontade, a intenção e a consciência estejam presentes ou possam intervir. No momento da ação é sempre assim, descreveu Ulrich: os músculos e nervos saltam e lutam com o eu; mas este, o corpo como um todo, a alma, a vontade, toda essa pessoa limitada como individualidade pelo direito civil, é carregada por eles como Europa sentada sobre o touro; e se não fosse assim, se infelizmente o menor raio de reflexão caísse nessa treva, a empresa fracassaria.
Ulrich dissera tudo isso sempre mais entusiasmado. No fundo, afirmou então, achava que aquela experiência de total retraimento ou ruptura da consciência se ligava a experiências perdidas que os místicos de todas as religiões conheciam, portanto de certa forma eram um substituto atual de necessidades eternas; e embora fossem um mau substituto, ao menos era alguma coisa; e o boxe, ou esportes semelhantes, que colocam isso num sistema racional, seriam uma espécie de teologia, embora não se possa esperar que todo mundo compreenda isso.
Talvez Ulrich falasse tão vivamente com sua companheira por desejar fazê-la esquecer a triste situação em que o encontrara. Nessas circunstâncias era difícil para ela saber se ele falava a sério ou de brincadeira. De qualquer modo, parecia-lhe natural ele tentar explicar a teologia com o esporte, e talvez até fosse interessante, pois esporte é uma coisa moderna, e teologia algo misterioso, embora inegavelmente ainda existam muitas igrejas. E, fosse como fosse, ela achava que um acaso feliz a fizera salvar um homem muito brilhante; mas também ficou pensando se ele não teria sofrido uma comoção cerebral.
Ulrich, querendo dizer alguma coisa sensata, aproveitou a ocasião para comentar, em tom casual, que também o amor fazia parte das experiências religiosas e perigosas, porque tirava os homens dos braços da razão para deixá-los flutuando no ar.
Sim, disse a dama, mas esporte era uma coisa rude.
Certamente, admitiu Ulrich depressa, esporte era uma coisa rude. Podia-se dizer que nas competições se descarrega um ódio sutilmente distribuído, um ódio generalizado. Naturalmente afirmava-se o contrário, que o esporte une, faz camaradas, e coisas assim; mas isso no fundo apenas comprovava que rudeza e amor não estão mais distantes um do outro do que as duas asas de um grande pássaro colorido e silencioso.
Ele acentuara as asas e o colorido pássaro silencioso — ideia sem muito sentido, mas cheia daquela incrível sensualidade com que a vida, em seu corpo desmedido, une todos os contrários rivais. Notou que sua vizinha não compreendia nada disso; a macia sensação de neve caindo, que a presença dela espalhava pelo carro, tomara-se entretanto ainda mais densa. Então ele se virou bem para ela e perguntou se não gostava de falar em assuntos do corpo. O corpo estava se tomando moda, e no fundo isso dava uma sensação sinistra, pois ele, quando muito bem treinado, assumia o comando e reagia a cada excitação, sem nada perguntar, com movimentos automatizados, com tamanha segurança, que ao seu dono restava apenas a inquietante sensação de observar, enquanto seu caráter se evadia junto com uma parte qualquer do corpo.
Pareceu realmente que essa pergunta tocara fundo a jovem; ela se mostrou excitada com essas palavras, ficou de respiração agitada e afastou-se um pouquinho, cautelosa. Um mecanismo semelhante ao descrito acima, uma inspiração funda, um rubor da pele, pulsações do coração, e talvez alguma coisa mais, parecia estar agindo nela. Mas exatamente nesse momento o carro parará diante da casa de Ulrich. Ele apenas pôde sorrir e pedir o endereço de sua salvadora, para o devido agradecimento, mas para seu espanto ela não lhe concedeu esse favor. Assim, o portão de ferro preto batido fechou-se atrás de um estranho surpreso. Provavelmente depois disso as árvores de um parque antigo tinham-se erguido, altas e escuras, na luz de lampiões elétricos, janelas se haviam acendido, e as alas inferiores de um castelinho semelhante a um boudoir haviam-se estendido sobre um relvado verde-esmeralda bem aparado, um pouco das paredes aparecera, cobertas de quadros e prateleiras de livros coloridos, e o companheiro de viagem, depois das despedidas, fora absorvido por aquela existência inesperadamente bela.
Assim tinha acontecido; mas enquanto Ulrich ainda refletia sobre a inconveniência de vir a ter perdido tempo com mais uma dessas aventuras amorosas das quais estava cheio, foi-lhe anunciada uma dama que não queria dizer o nome e entrou coberta por um longo véu. Era ela, que não tinha mencionado nome nem endereço, e que agora, com o pretexto de ver como ele estava, tomava, romântica e caridosa, a iniciativa de prosseguir a aventura. Duas semanas depois, Bonadéia já era amante dele há catorze dias.
Robert Musil, in O homem sem qualidades

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