sábado, 23 de setembro de 2017

Rulfo e seus fantasmas


A hipótese de que a realidade não passa de um sonho, que Jorge Luis Borges defendeu com obstinação, é, em geral, desprezada como um capricho intelectual, uma piada ou uma tese desprezível. Talvez um delírio, que merece tratamento, mas não crédito. Contudo, somos defrontados, dia a dia, com fatos inaceitáveis, ou inacreditáveis, ou mesmo intoleráveis. Eles guardam a consistência viscosa dos pesadelos e surgem de modo abrupto – como aparições ou vultos – naqueles momentos em que, entorpecidos pelas imagens banais do mundo, confiamos (em demasia) em nossas convicções.
A literatura, mais sábia, tira proveito (e potência) dessa matéria disforme que sustenta a vida humana. Outro argentino, Ernesto Sabato, disse que o escritor é “um homem que, em algo perfeitamente conhecido, encontra aspectos desconhecidos”. É inofensivo sentir assombro diante de relatos fantásticos ou de histórias extraordinárias. Doloroso é quando esse espanto emerge da vida diária, aquela em que estamos habituados (os pragmáticos diriam: “treinados”) a viver.
Ao se deparar com a débil pele que separa a realidade de seus fantasmas, a ciência a perfura, a filosofia a define e a religião a eleva. Só a literatura consegue parar e olhar. Alerta Sabato: “O romance não demonstra, mostra”. Um das mais assombrosas dessas exposições aparece em Pedro Páramo, novela do mexicano Juan Rulfo (1917-1986). Um livro fundamental da narrativa latino-americana, agora com nova edição da Best Bolso (tradução e prefácio de Eric Nepomuceno). Lançado em 1955, Pedro Páramo é uma narrativa em que a desolação e o assombro se entrelaçam – como dois apaixonados. Como a nos dizer que, sem perder alguma coisa, não chegamos a outra.
Limitar a novela de Rulfo a seu enredo é o mesmo que reduzir um bolo a sua receita. Com a mesma meia dúzia de ovos se pode fazer um manjar raro ou um pudim banal. Mas, sim, um enredo ali se esboça. Para realizar o desejo de sua falecida mãe, Dolores, o protagonista Juan Preciado, narrador inicial, retorna a Comala em busca do pai, Pedro Páramo. Sua luta para reencontrar o passado o carrega a uma cidade que não existe, onde circulam, como vivos, homens e mulheres mortos. Sua aventura se faz das vozes que ouve, e não das coisas que vê.
A história seria vulgar se Rulfo adotasse a lógica clássica, que afasta a realidade do irreal. Ocorre que, em Pedro Páramo, a realidade não é superior à fantasia; tampouco os mortos estão menos vivos que os vivos. A existência do próprio narrador não é digna de confiança. Fiel a seus fantasmas, de cuja companhia nunca abdicou, Rulfo escreveu a história de Juan Preciado como se tivesse só um olho, e não dois. Com o olho inexistente, ele se conecta a uma segunda realidade que, em vez de luz e firmeza, lhe oferece ignorância e tremor.
Ao fim, o leitor fica, ele também, com a sensação de que lhe contaram uma história pela metade. De que existe uma segunda história, que lhe foi roubada – e o ladrão seria o próprio Rulfo. Nesse momento, o desamparado leitor tem todo o direito de se apropriar das palavras do padre Rentería, um dos personagens do livro: “Saiu da casa e olhou o céu. Choviam estrelas. Lamentou aquilo, porque teria gostado de ver um céu quieto”.
É dessa verdade amputada, que quanto mais se revela, mais se esconde, que Pedro Páramo tira sua grandeza. Foi dela que grandes escritores como Gabriel García Márquez e Júlio Cortázar tiraram forças para compor suas grandes ficções. Depois de Pedro Páramo, a literatura hispano-americana deixou de ser um universo fixo, ancorado em uma realidade de pedra. Ela se transformou em um ponto de passagem, uma ponte precária pela qual transitam as fantasias do continente. Imita, assim, Colorado, o cavalo de Miguel Páramo, filho de Pedro, que, depois da morte de seu dono (como que desprovido, ele também, de um olho), passa a vagar, desesperado, pelas estradas.
Desde sua chegada a Comala, Juan Preciado percebe que entrou em uma outra formação do real. “Meu corpo, que parecia afrouxar-se, dobrava-se diante de tudo, havia soltado suas amarras e qualquer um podia brincar com ele como se fosse um trapo.” Carregado por forças das quais só captam estreitas tiras de luz, como se estivesse com os olhos vendados, ele se habitua, por fim, a entrever, em vez de ver. Entrever: divisar de forma parcial e confusa. Curioso que os repórteres, seguidores da realidade, falem, eles também, de uma “entrevista com fulano” e não de uma “vista”.
No senso comum, fantasmas são almas inquietas, que se recusam a aceitar seu destino. Em Pedro Páramo, Rulfo nos mostra quão redutora é essa ideia; o quanto ela asfixia não só os mortos, mas também os vivos. A realidade não é uma pedra, sólida e imóvel; ela é um líquido que circula pelo mundo e toma a forma de quem o recolhe. Foi na mesma zona de oscilação que Juan Rulfo escreveu seu segundo livro, a coletânea de contos A planície em chama, lançada dois anos antes de Pedro Páramo.
Borges dizia ser um absurdo supor que um homem é mais real do que um sonho. Antes de responder a essa pergunta, ele argumentava, “é preciso saber se o universo pertence à literatura realista ou à literatura fantástica”. O hábito nos leva a acreditar na primeira hipótese; a leitura de ficções como Pedro Páramo nos desvia para a segunda. A realidade, contudo, não está nem de um lado nem de outro; ela é um abismo que se abre entre os dois. Mesmo a mais bruta realidade se torna banal se dela excluímos a ficção.
No fim do livro, a morte de Pedro Páramo – que enfim o nivela à história que acabou de viver – aproxima a literatura da destruição. “Seus olhos mal se moviam; saltavam de uma recordação a outra, desfazendo o presente.” Morria ou escrevia? Volto a Ernesto Sabato, que, como um mestre zeloso, invadiu minha leitura de Juan Rulfo. Fala-se muito na crise da arte que, enfraquecida, inútil, não daria mais conta da realidade. Alerta Sabato: “O que está em crise não é a arte, mas o conceito de realidade. É a crença na realidade que começa a morrer”.
José Castello, in Sábados inquietos

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