quinta-feira, 21 de setembro de 2017

Liberdade em Caiena

Por distração, ou incapacidade de lidar com tantas informações, passo semanas sem consultar meu correio eletrônico. Agora, ao fazer uma faxina na caixa de entrada, notei que havia 122 mensagens não lidas. Percebi, com culpa, que não enviei a um amigo um exemplar do livro Norte , de Marcel Gautherot; certamente ele teria apreciado o olhar do fotógrafo franco-brasileiro sobre a Amazônia. Mas, ao ler as mensagens seguintes, a culpa cresceu de forma exponencial, pois os encontros com outros amigos não passaram de promessas vãs.
Também me dei conta de que não respondi a convites para ir a cidades do outro hemisfério, só de pensar em fazer viagens longas me dá uma preguiça macunaímica, hoje em dia até crianças e idosos são revistados com rudeza nos aeroportos; prefiro viajar para o interior do Brasil, ou para dentro de mim mesmo, lendo livros que me levam para outro tempo e outra paisagem.
Apaguei 27 títulos com anúncios publicitários e, movido pela impaciência, dezenas de mensagens iniciaram uma corrida vertiginosa rumo à lixeira. Quando ia apagar tudo, eis que leio: Cayenne. Era um convite datado de setembro de 2009! Passou batido. E dessa vez lamentei… Quando criança, ouvia do meu avô materno descrições de Caiena, onde, há quase um século, o navio italiano em que ele viajava fez uma escala demorada antes de seguir para Recife.
Caiena era uma palavra tão fantasiosa que em setembro de 1990 fui conhecê-la. Mesmo sem entender o créole, me senti em casa: reconheci peixes e frutas da Amazônia; o clima era quase o mesmo, a água cor de fígado do rio Amazonas chegava até o litoral da Guiana Francesa e misturava-se com a do Atlântico, formando uma insólita paisagem oceânica e fluvial. Lembro que visitei os lugares descritos por meu avô. Alguns, como La Crique e a Place des Palmistes, ainda eram reconhecíveis; outros tinham sido destruídos ou pertenciam à imaginação de um contador de histórias.
Num bazar do bairro chinês vi uma urna funerária indígena, com desenhos que lembravam os da cerâmica marajoara. Perguntei em francês quanto custava, uma mulher respondeu: 65 francos.
O sotaque nos unia: ela era brasileira, de Macapá.
Vim para Caiena em 1979”, disse Edenilza. “Já tinha muito brasileiro na Guyane. Aprendi umas palavras em francês lavando e passando roupa na casa de uma família.”
Esticou o beiço para um homem sentado num banquinho e acrescentou: “Dois anos depois me casei com Charles Hung”.
Quando ele ficou de pé, o espaço do bazar encolheu. Era um mulato altíssimo e corpulento, cujo olhar revelava altivez; apertou minha mão e, talvez por cortesia, pronunciou umas poucas palavras na minha língua. Depois, quando conversamos em francês, Hung disse que era filho de um vietnamita que fora detido e enviado para a Guiana Francesa. Em 1933, seu pai e centenas de vietnamitas de Annam que lutavam contra os franceses na Indochina foram transportados para Caiena e encarcerados no Bagne des Annamites. Quando foi solto, casou com uma senegalesa, filha de um dos carcereiros dessa mesma prisão.
Os olhos levemente puxados de Edileuza assemelhavam-se aos de Charles. O colonialismo, em tempos e regiões distintos, havia selado o destino desse casal. Lembro que no mesmo dia consultei um mapa-múndi só para ver o itinerário desses degredados políticos: a longa e infernal travessia do Golfo de Tonquim até Caiena.
Na manhã seguinte voltei ao bazar e pedi para que Hung me acompanhasse até o Bagne, situado em Tonnégrande. Era uma tarde nublada e abafada, tipicamente amazônica. Ao avistarmos a cadeia, disse a Hung que eu estava surpreendido com a modesta dimensão do edifício, que eu julgava enorme.
Há coisas mais surpreendentes”, disse Hung. “Meu pai mofou nesse bagne e foi submetido a trabalhos forçados por ter lutado contra os franceses no Vietnã. Eu, em qualquer lugar do mundo, sou considerado asiático ou africano, mas sou francês, minha língua materna é a francesa. Casei com uma brasileira e meus três filhos são bilíngues. Um dia quero levá-los ao Brasil e ao Vietnã.”
Apontou a cela onde o pai dele penou por nove anos. Era a última de uma das duas fileiras separadas por uma passagem coberta de cascalho e pedras. Parecia uma jaula, como se os detentos fossem animais. Ou animais políticos. Notei que Hung queria voltar ao bairro de Caiena que seu pai ajudara a construir em 1945. No fundo de uma cela li com dificuldade uma palavra que um prisioneiro escrevera provavelmente com a ponta de uma pedra: liberté . As letras, quase apagadas pelo tempo, eram retorcidas e desiguais.
Talvez essa palavra ainda esteja lá, à espera de um visitante nesse lugar arruinado da história.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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