quarta-feira, 30 de agosto de 2017

O dia de São Nunca (trecho final)


O menino contava e recontava.
Mais para o fim, o que parecia um copo de leite disse para a moça: “Senta do lado dele.” Ela se sentou do meu lado. “Põe o santo na mão dele.” Ela me deu o santo. “Abrace o santo.” Abracei o santo. “Põe a mão no ombro dele, abraça ele.” A moça me abraçou. “Isto. Sorria. Isto.” E para mim: “Você também, sorria.” Clique, clique. E disse para o amarelo: “Agora, você.” E disse: “Agora os dois, cada um de um lado dele.” E o amarelo: “Agora deixa eu fazer uma sua.” E o branco-de-leite veio para o meu lado, primeiro sozinho, depois com a moça. E foi assim um bocado de vezes, me davam o santo, me tomavam o santo, e a moça perguntava: “Quantas chapas ainda tem? Não gastem tudo.” E o copo de leite parecia que não ouvia, batia, batia, batia, como gostava de tirar retrato. E mais para o finzinho ainda ele virou aquele negócio preto e comprido para as telhas e disse: “Agora é a vez da sua irmãzinha”, mas a lagartixa parece que não gostou e saiu correndo, até se enfiar na parede e sumir.
Eles faziam tudo muito depressa, nessa hora. Não dava tempo de explicar que às vezes eu penso que Deus foi melhor com as lagartixas do que comigo. Porque Ele me deu estas duas perninhas de lagartixa, mas as lagartixas andam e eu não. Eu queria dizer pra eles que estava doido pra mamãe chegar, quem sabe ela fazia um café e um doce de leite? Isso era o que me deixava triste: eles aqui e mamãe lá longe.
E um disse (o muito branco, outra vez. Clique, clique e falando depressa): “Nós vamos voltar. Quando foi mesmo que você disse? Dois de fevereiro? A Festa da Padroeira. A igreja aberta o tempo todo. Não vamos nos esquecer. Vamos trazer muitos presentes para você, viu? Muitos brinquedos. Você é um garoto bacana, um garoto legal.” Falavam assim. Era o jeito deles. Então ele pegou o santo de novo e disse: “Você me dá ele? Nós voltamos aqui, vamos trazer muitos brinquedos. Vamos levar o santo, viu? E aquilo ali também, viu?” E aí ele deu o santo para a moça e disse: “Você leva o santo”, e os dois carregaram o nicho, com a lamparina acesa e tudo, o fedor do pavio queimado no azeite e eu disse: “Cuidado, senão o pavio apaga”, e eles saíram, quase correndo, e não olharam para trás.
Dois de fevereiro ainda está muito longe, não está, mamãe? Ainda estamos no mês de abril, não foi o que a senhora disse? Ainda bem que dois de fevereiro não é Dia de São Nunca.
Sabe o que eu penso, mamãe? Que eles devem ser os três reis magos. A senhora não acha? Eles vão voltar, trazendo os presentes. São os três reis magos. Mas tem a moça. Bom, pode ter morrido um rei mago e a moça entrou no lugar dele, para continuarem sendo três. Será que eu estou pensando certo, mamãe?

Ninguém disse nada de certo ou errado, ninguém pensou no mais certo ou no mais errado — um homem comentava, tentando assentar a poeira. Fora o menino, que se mantinha alegre, calmo e sonhador como sempre, o resto era a confusão, já próxima (ou talvez além) de um delírio. Mas o motor da luz será desligado daqui a pouco e o escuro devolverá de novo os homens para os seus sonhos. Restará o acabrunhamento, o desejo da vingança. E isto não entra nos sonhos. Entra nos pesadelos. Com certeza hoje será uma noite de pesadelos. Este homem, porém (não o último a falar, diga-se), sente-se no direito a umas palavras esclarecedoras. Ele disse:
Agora, agora, esse menino precisava lá de santo? Ele precisa é de perna para andar.
Por um momento os outros chegaram até a concordar. Era isso mesmo. No que todos refletiam e achavam que estava tudo muito certo, sim senhor, um outro homem lançava uma nova faísca, quente como uma brasa:
Ora muito bem, o senhor tem toda razão. Mas o caso não é o santo. O caso é o roubo.
Dito isso ele foi saindo de mansinho. Queria conversar um pouco com o tio do menino, antes que a luz se apagasse. E enquanto a luz estivesse acesa, ele, esse tio, continuaria lá, na sua marcenaria, esquecido no seu canto. E foi assim que o homem o encontrou: torneando pacientemente uma cantoneira — para outro santo. O tio trabalhava e rezava:

Louvando a Maria
O povo fiel

O homem gritou da janela:
Seu Marceneiro. Seu Marceneiro. Roubaram o santo do menino.
Sentindo-se interrompido, o tio recomeçou a reza:

Louvando a Maria
O povo fiel

O homem pensa que ele não ouve. Insiste:
Seu Marceneiro. Seu Marceneiro. Roubaram o santo do menino.
O tio volta a recomeçar:

Louvando a...

Parou. Sua cara atarantada parecia que ia se despregar do corpo e voar pelo espaço, a caminho do infinito, a caminho do céu. Não era para lá que este velho beato iria, quando morresse? Todos sabiam disto. Ele era um santo entre os vivos, o lado de lá desta vida desgraçadamente terrena. E o tio, com os seus velhos óculos remendados e suspensos na testa cheia de dobras, abriu os pulmões, abriu a cancela de um inferno jamais suspeitado. E soltou, com toda a força da sua alma, o primeiro palavrão de sua vida, que ecoou como um trovão, um estrondo, um ronco de Satanás.
Era um eco capaz de arrebentar o mundo, o homem pensou, seguindo o seu destino, debaixo das estrelas. Já não entendia mais nada.
Antônio Torres, in Meninos, eu conto

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