domingo, 13 de agosto de 2017

No jardim de delícias

Já se sabe: nos trópicos — talvez em toda a América Latina — os olhares são menos sutis. No Caribe, um mirón é alguém que olha sem ser visto. A essência do olhar é a mesma: olhar amoroso e erótico, de um amor e eros nem sempre possíveis.
Não foi outra a história do meu primeiro amor platônico, quando eu era jovem demais para viver amores carnais. Naquela época eu olhava com insistência para uma moça de origem estrangeira numa Manaus que me era mais que familiar. Ao meio-dia, mal chegava da escola, tirava a gravata e o cinturão do uniforme de calouro, arregaçava as mangas, pegava o binóculo poderoso do meu pai e trazia para perto de mim a imagem de uma loura.
No equador da minha primeira juventude, quase todas as louras eram de origem inglesa ou alemã. Podiam ser também caboclas: louras perfeitamente falsas.
Com a imagem dessa moça viajei para muitos lugares distantes, como se eu fosse um globe-trotter do amor sempre irreal, nunca carnal. Às vezes a imagem se aproximava tanto do meu rosto que meus olhos quase podiam tocá-la. E um dia, um domingo nublado, de sol escondido, isso de fato aconteceu: vi a moça usando um biquíni vermelho, esse ousado traje de banho, verdadeiro ultraje ao moralismo de 1964: ano nefasto. O corpo jiboiava sobre uma toalha estendida num pátio distante, bem na fronteira com o jardim da minha morada: o lugar do pecado original, onde o cheiro de jambo sabia a maçã.
A toalha era irrelevante; o binóculo, cúmplice secreto de viagens sentimentais de um jovem voyeur, trouxe ao alcance das minhas mãos um par de pernas perfeitas, ombros dourados, seios arredondados e firmes, que eu só tinha visto em filmes no Éden, que era o outro lugar do pecado.
Estava imerso nesse sonho de verão em dia nublado, suando frio como se o coração fosse saltar pelos olhos, quando dois tentáculos enlaçaram minha cintura, apertando-a com gana de jiboia ávida para engolir sua presa. Assustado, saí do sonho visual, real. Eram os braços e as mãos de minha mãe, cuja voz exclamou: “Mas eu não estou dizendo?! Essa é boa!”.
Ela poderia ter dito: “Essa é gostosa!”. Mas não seria a voz de minha mãe, e sim minha voz interior, pois a outra, sonora, estava entalada.
Já para o banheiro”, ela ordenou. “Vai tirar esse suor fedorento do teu corpo.”
O furor da voz materna, que soava como ciúme eterno, exortava o filho a purificar seu corpo. Quando eu ia trancar a porta do banheiro, ela me perguntou, em tom inquisidor: “O que tu estavas olhando com o binóculo do teu pai?”.
Os jambos maduros, mãe. Estou louco pra comer jambos.”
Ela sabia que eu gostava dessa fruta inocente, doce e carnuda: a mais suculenta do nosso jardim de tantas delícias.
Milton Hatoum, in Um solitário à espreita

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