domingo, 27 de agosto de 2017

A companhia indesejável

A moça é daquelas que dão duro no trabalho, como chefe de órgão importante, e depois vão para casa cuidar de si mesmas. Chamemo-la Andreia. Vive só, o que é mais inteligente do que viver com um apêndice importuno. Sem empregada, tendo apenas faxineira, cuida pessoalmente de sua dieta-da-lua, de suas roupas, de suas contas, de sua música, de seu tudo. E ao apagar a luz, finda a jornada cheia de responsabilidades para com a pátria e a vida, seu sono é o da pureza de alma. Que bom viver só, sem a presença do Outro, o terrível Outro, que é sempre (ou quase) um Eu rabugento ou chatíssimo!
Semana passada, Andreia acordou disposta como sempre a lutar, e foi tomar seu chazinho-de-jasmim. A mesa, arranjada de véspera, era primor de ordem e asseio, de que a moça faz questão: um de seus traços pessoais. E que viu Andreia, além da xícara, dos apetrechos, da latinha de chá, da toalha, dos finos biscoitos? Viu que alguém passara por ali e tomara chá antes dela!
Que tomara chá, propriamente, não, mas que usara a mesa e deixara sinais, era evidente. As coisas estavam desarrumadas, a colher fora de lugar, havia rugas na toalha, um biscoito fora trincado, e até, para horror de Andreia, pequena e estranha substância se depositara sobre a mesa!
A moça correu às portas, a social e a de serviço, e achou-as trancadas como as deixara. Pela varanda fechada não poderia ter entrado ninguém. Que ser misterioso conspurcara a sua mesa? Mal indagou isto a si mesma, viu uma forma veloz deslizar pelo tapete e esconder-se atrás de uma poltrona. E essa coisa chispante, branco acinzentada, era um camundongo. Ir correndo à copa, brandir uma vassoura e atacar o bichinho foi obra de um momento. Em vão, é claro. Não há camundongo que se deixe pegar por moça nervosa e de má pontaria.
O tempo de Andreia era curto, não dava para empreender caçada em regra, com o auxílio do gato do porteiro; ela deixou o apartamento e foi muito abalada para o serviço. De lá telefonou para a Comlurb, pedindo que fossem pegar o rato em sua casa. Marcada a visita para o dia seguinte, Andreia faltou ao trabalho para atender ao matador de ratos, que apareceu com a sua instrumentália, viu, não achou sinal de rato nenhum e pediu maiores esclarecimentos:
A senhora pode me dizer o tamanho dele?
Vi só um momentinho, acho que tem uns noventa milímetros de comprimento e outros tantos de rabo.
O homem sorriu:
Ah, então o que a senhora viu foi um camundongo.
Que diferença faz? Ele rói da mesma maneira e eu me sinto ameaçada.
A diferença é que nós só cuidamos de ratos, desses ratões ou ratazanas, que medem vinte centímetros de comprimento e pouco menos de rabo. Esse ratinho da senhora é café-pequeno pra nós. Já experimentou ratoeira?
O porteiro me emprestou uma, que até agora não pegou nada.
Vai ver que o danadinho sentiu cheiro de ratoeira usada, que não engana, e não foi besta de arriscar. Eles têm um faro! Compre uma ratoeira no bazar.
É o que vou fazer já. E se ela não pegar? Se o ratinho for bastante inteligente para perceber que aquilo é de morte?
Bem, nunca se pode garantir nada a respeito do comportamento dos camundongos. Eu mesmo já lutei contra eles lá em casa, e pegava uns três por dia. Mas sabe o que aconteceu? Ficava sempre uma fêmea para parir cinco vezes por ano uma média de oito a dez filhotes de cada vez.
O quê? — Andreia teve o maior arregalo de olhos de sua vida. — E eu vou ter em casa essa cambada toda infernizando a minha vida?
Calma. Não estou dizendo que o seu camundongo…
Meu, não!
Que o camundongo desta casa se multiplique. Se é um só, como é que vai se multiplicar? Procure manter a serenidade, nem eu vim aqui para assustar mais a senhora. Vim em missão de paz.
E então?
Então, acho que tenho uma solução para o seu caso.
Diga, diga.
Tem um preparado aí que dizem que é um barato. Eu não experimentei, mas um amigo meu afiançou que é tiro e queda. O nome é Catitoline. Não sabe que o povo chama camundongo de catito? Pois é.
Ah, obrigada pela indicação! Vou rezar para que esse tal de Catitoline dê certo. Bem, me esqueci de que não rezo, mas Deus é grande. O que eu não posso é viver em companhia de um ratinho, e muito menos se ele for de família numerosa.
Pelo telefone, Andreia comprou imediatamente o raticida.
Agora vamos à luta — exclamou com voz de combate.
Pegou da bula, que era vasta, alastrada em duas páginas de tipo miúdo, com ilustrações. Sem tempo a perder, procurou o essencial; dosagem, e como preparar a isca. Espalhou pela casa, do quarto de dormir até a área de serviço, as pequenas porções de pó róseo impregnadas em pedacinhos de folhas de chicória — ah, esperança! ah, incerteza! porque Andreia confiava e descria ao mesmo tempo. Sua cabeça não sossegava, com o pensamento de já não morar só, de ter uma companhia que ela não convidara nem desejava — a mísera, assustadora, incontrolável companhia de um ratinho mais ou menos invisível.
Suas noites eram povoadas de ratinhos que bailavam sobre a escova de dentes ou se escondiam no sutiã. Despencavam-se do lustre, em brincadeira perversa, indo cair dentro dos chinelos. E até no chuveiro eles se mostravam, envolvidos em água. Andreia tinha medo de dormir; passou a ter pesadelos acordada. Um dia, abriu o livro de Manuel Bandeira, poeta de sua devoção, e um camundongo saltou do interior, entre duas folhas. Será que Catitoline resolve?
Andreia lera, afobada, que era preciso insistir de quatro a seis dias na aplicação; se fosse o caso, até dez. Pela manhã, passava em revista as porções, que diminuíam de tamanho. O ratinho cevava-se. Andreia, ao renovar as iscas, chegou a pensar que, no fundo, estava criando e alimentando um rato, em vez de exterminá-lo. Era preciso ter paciência e persistência. No dia em que nenhuma folha de chicória aparecesse mexida, a guerra estaria ganha.
O ratinho continuava circulando pelo apartamento, circulando e comendo. Foram dias penosos de incerteza, quando quem menos ou nada comia era Andreia, receosa de que, depois da refeição de Catitoline, o danado fosse degustar sobremesa de queijo, na mesa de jantar. Todos os lugares, móveis, vasilhas e utensílios da casa estavam sob suspeita. Poluídos? Não poluídos? Quem sabe! Na dúvida, tocava o mínimo possível nos objetos. Com a ponta dos dedos.
As amigas, a quem Andreia contara o problema, indagavam da evolução dos acontecimentos. Aconselhavam dobrar, triplicar a dose de Catitoline. Fazer novena para santa Ludvígia, protetora contra animais daninhos. Recorrer à macumba do Morro dos Cabritos. Contratar um segurança que permanecesse indormido no interior do apartamento. Apelar para o presidente Figueiredo, por que não? Tão fértil, a imaginação das pessoas!
Como é: o ratão está engordando com as mordomias? — telefonou um amigo, e Andreia desligou, indignada. É brincadeira que se faça?
Pouco a pouco, as iscas foram se mostrando intactas. Assim ficaram durante cinco dias. Tempo bastante para Andreia confiar no veredicto das amigas:
Esse, nunca mais. Pode crer.
Nenhuma notícia do ratinho. Procura-que-procura em toda parte, esconderijo, ângulo, nada. Como podia desaparecer assim? Por que o cadáver não ficara exposto, certificante? Afinal, um rato é um rato, não uma abstração.
De qualquer maneira, Andreia dedicou um pensamento de gratidão ao Catitoline, veneno milagroso e sutil, lento e misterioso. Leu com aprazimento a bula, antes percorrida de relance. A curiosidade a incitava: Por que motivo o cadáver desaparecera?
A bula informou-lhe que o ratinho não apodrecia nem cheirava mal porque se recolhera ao lugar de origem e aí quedara morto, mumificado. É das excelências de Catitoline: fulmina e impede o mau cheiro.
Mas que é que ele tem de especial para fazer a mumificação? Que substância gostosa é essa, que mantém a gula do ratinho durante tantos dias, sem provocar-lhe cólicas e até o incitando a comer mais?
A bula, copiosa e ilustrada, respondeu, em exatas palavras, que o elemento químico responsável pela morte e pela conversão do camundongo em múmia inodora era segredo de fabricação, protegido pelas leis de propriedade industrial, mantido nos últimos quinze anos pela multinacional proprietária da fórmula, bolada por eminente cientista holandês, especializado em raticídio. Quanto ao sabor da comida, a bula riu e não escondeu:
Ora, o ratinho não é levado pela fome, mas pelo desejo sexual. A substância empregada proporciona-lhe grande prazer e até mesmo orgasmo. O camundongo morre feliz, depois de uma temporada erótica da maior intensidade. Não é o alimento que move os bichos e tantos seres humanos; é o sexo.
Vivendo e aprendendo — concluiu Andreia, voltando à paz e à ventura de morar sozinha. O que — acrescente-se — não é sinônimo de viver sozinha.
Carlos Drummond de Andrade, in Boca de luar

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