sábado, 29 de julho de 2017

Reboldra

Dos lados do riacho, terra sua, Iô Bom da Ponte plantava o melancial. Eram melancias de cada ano não se ver como essas, para negócio e maispreço.
Iô Bom, porfiante esforços, viera a obtê-las sós a primor, nem lembrado mais de que jeito. Na estação do tempo, porém, inquietava-se de que as furtassem. Em fato, furtadas.
De defendê-las no diário das noites, três deles sucessivos não dando conta, Iô Bom trejurou que cachorros ao angu por mão de moça solteira relaxavam o vigiar.
Porquanto, calejado viúvo, tinha filha, que pelas costas o odiava: — Cujo quem, para espreitar alguém! — a Doló ambicionava vida maior que dez alqueires.
Dureza de ouvido pejando-o, pensava o pai que ela o quisesse auxiliar com conselho. Ele para si não ousava abrir nem uma daquelas sem iguais melancias — o que seria esperdício da fartura de Deus, que em puro dinheiro se solve.
Concebeu remédio: declarado inventar que, numas ou noutras, botara veneno para ladrões. Disse-o, no arraial, afetando-se legítimo capaz de suas posses.
Doló, de banda, entanto a todos delatava a mentira daquilo, embustes de pirrônico. Iô Bom, no engano, sorridículo aprovava-a com a cabeça e cãs. Ele a queria pesada, à brutalha, ombreando-o no rijo da semana; mas prazia-lhe aos domingos ficasse faceira, vistosa. Ela ficava.
O escarmento da estricnina não surtindo feito, Iô Bom teve-se a recurso. Trouxe para a chácara o diabo paupérrimo Quequéo, fiou-lhe em mão, sem carga, a espingarda. Esse já então era um estropiado, manquejando endurecido, devido a ataque de congestão. Mas fora circunspecto jagunço, por nome trovão Estrulino, havia de os vadios repelir. Além de que nada quase custava, só por misericórdia o de comer e fumo para pitar.
Iô Bom desobrigado esperou: a vida recobrava ordem, ele no trabalho e repousos; a Doló breve se casava, moraria lá, mais netinhos; as melancias formosas se repetiam entre os milhos e os feijões. Tanto para o pobre, também, cada dissabor prefaz o medido consolo.
Pobre por avarezas? — Doló tomava-o de ponta, segura de sua semi-surdez.
Iô Bom arranjava de achar: que a mocidade está criando o carecido juízo. Ia ver as melancias, como o verde é cor de coisas: sobrepintadas de escuro, semelhando couro de cobra. Dentro, refrescas vermelhas doçuras; mas apreciava-as assim era o comprador.
Iô Bom, após chuva, curava-as do respingado barro e ciscos, pudesse escorá-las, não pesassem a toque nu com o chão, e revirá-las para pegarem redondo o sol de dezembro. Dia viria, tudo melhor se rematava, em retidão de razão.
Voltavam eram os gatunos, por agravo à regra de Deus. Para que é que aí, então, esse o Quequéo, à pança bem servida, nem prestando para bom espantante? — Doló dema... Ela socorria o indiaço.
Mas não devendo ser de pique, senão por movido coração. E fato se mostrou: agora as frutas faltadas consistindo nas de menos valor?
Iô Bom decidia passar noites, socapo, à esparrela. Isso ele calou. Inda que estranhando-o o olhassem — o Quequéo, afeiurado, inteiriço, e a Doló, cara ingrata, mocetona.
Saiu, ao se esconder da lua, não causando rumor; nada de insensato notou, na madrugada seca. Ele e o Quequéo, sofismudo do outro lado do riacho, davam-se as costas ou a frente.
Até que um assovio se desferiu. Só o estarrecimento. Era, de boné à cabeça e arma ao ombro, o moço Valvinos: noticiou-se esse que por uma paca, se tanto que sem cachorro. Mau-grado cujo, não podia ter advindo anonimamente; rico, filho de pai acreditado. Iô Bom, bulindo-se, àquela hora achou de lhe oferecer café. O Quequéo estragado tossia, para se ter raiva ou pena. Deveras a Doló acordara, mas a janela não abriu. A lua esteve incerta reaparecida.
Disso Iô Bom tirava a lembrança, só aperfeiçoando seu desgosto; tristeza avisava-o de coisas, neste mundo de por-de-trás. Rogava paz, preceitos, para todos; sozinho, consigo passava vergonha. Supriu a espingarda do Quequéo com cartuchos de chumbo mortal. Diligenciava ou dormia; nunca bocejara.
Foi uma manhã. Foi forte o que viu. Quequéo a se arrastar, em desamparo de agonias, cólicas, deitado de bruços, de chegar com a boca à água do riacho não alcançava. A logro: o que cuspia não era sangue, baba rosada, mas mascas de melancias.
Bem querido, mal fazido... — Iô Bom sumido disse, lambia-se o gume dos dentes, como que por pedaços de gelos engolidos. Ele quisesse um pouco mais ensurdecer, a Doló culpando-o de maldades.
Jurou — nem envenenara plantação nenhuma.
Tinha de gerir o enterro, puxar as remendadas calças do outro, emprestar-lhe seu terno bom de roupa — a Doló impunha. Malentendia acerca do defunto. Apanhou a espingarda, deu tiro para cima: os pássaros das árvores exatos revoaram.
Desde a morte não teve sono.
Fez fora uma coberta de palmas, deitado lá pendurado se encolhia, como cachorro em canoa.
Imaginasse aumentado o melancial, tresdobro tamanho — porém louco o alheio sem-lei o saqueando. Norma de bem-procedido sossego, pautas para sempre, a vida não dava? Nem aquele Quequéo fora nunca um jagunço cristão Estrulino, só falso.
Iô Bom sentia-se descompor. Da Doló, de algum tempo, precatava as vistas, nela não queria doer o pensamento.
A noite era invencioneira, às vezes. Despregou olho: havia era o latejo escuro, ninguém no redor ocupava lugar. Chegou a estimar que viessem os ladrões, caso comum, costumadamente. Temia o dia, que amanhecesse. Do furtivo aparecer mesmo do moço caçador sedutor Valvinos sentiu falta.
Doló, da porta, insultava-o, na manhã demais clara. Vestida de domingo, ela chamava desgraças.
Iô Bom levantou pé, coiceando o ar, ia cair da rede, se agarrou com as duas mãos. Sem querer, então, viu-lhe: a barriga, redondeada, desforme crescida, de cobra que comeu sapo. Isto entendeu — purgatórias horas.
Doló, doidivinda, arrancava agora melancias, rachava, mastigava-as, a grandes dentes, pelo queixo e sujando a boa roupa corria o caldo. O mundo se acabou. Careteava ela caretejos. Fez-lhe ouvir: — Desejos meus! — e aquilo ria, mostrava, gozosa, grossa se apalpava. — Quem havera de direito casar com filha de doito pai?! — ainda escarrou dos lados. Entrava em casa, a enrolar trouxa, ia-se embora, para vida.
Iô Bom andou, sem sustância para soluço, urinara na calça, aí panhou do chão e provou das despedaçadas frutas, não achou gosto.
Mas o mundo se acabava e ele persistia cuidando, melancia por melancia, nem lhe restasse amor outro, ouro do ouro, perfeitamente. Da Doló os gritos, pios dos passarinhos, o marulho, vez nenhuma ouvia, indesditoso surdo de todo, desperto.
Parava, pernas muito abertas, velho e só como Adão quando era completo, pisava bem o fundo pedregulhento do riacho.
Guimarães Rosa, in Ave, palavra

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