quarta-feira, 26 de julho de 2017

Partida

Fotograma do filme As vinhas da ira

Nas casinhas em que moravam, os meeiros examinavam o que lhes pertencia e o que pertencera a seus pais e a seus avós. Preparavam-se para a grande viagem rumo ao Oeste. Os homens estavam impassíveis porque o passado fora destruído, mas as mulheres sabiam que o passado clamaria por elas nos dias vindouros. Os homens iam aos celeiros e aos alpendres.
Aquele arado, aquela grade, lembram-se? Na guerra, a gente plantou mostarda. Cê lembra daquele camarada que queria convencer a gente a plantar aquela planta de borracha que ele chamava de guayule ? Fique rico, compre aquelas ferramenta. Gaste alguns dólares e verá. Oitenta dólares pelo arado, fora despesas de transporte, são da Sears-Roebuck.
Carroças, armações, semeadoras, enxadas empilhadas. Tragam tudo. Juntem tudo. Ponham tudo no caminhão. Levem tudo para a cidade. Vendam tudo por quanto puderem. Vendam a parelha de animais e a carroça também. Não precisamos deles para mais nada.
Cinquenta cents não é bastante por um arado. Essa semeadora aí custou trinta e oito dólares. Dois dólares é muito pouco. Não posso levar ela comigo... bem, fique com ela, que o diabo o leve. Fique com essa bomba também, e com os arreios. Fique com os cabrestos, coleiras, cangalhas e rédeas.
Os objetos usados empilhavam-se no pátio.
Não posso vender mais arados manuais, ninguém os compra. Cinquenta cents pelo peso do metal. Tratores, é só o que se usa agora.
Bom, leve tudo, todos esses troços, me dê cinco dólares por tudo, tá bem? O senhor não está comprando só velharias, está comprando vidas arruinadas. Mais, o senhor está comprando amargura. Comprando um arado para esmagar os seus próprios filhos, comprando aquilo que poderia salvar-lhe a alma. Cinco dólares, não, quatro. Não posso levar tudo, bem, aceito os quatro dólares mesmo. Mas eu estou te prevenindo: o senhor está comprando o que ainda vai esmagar seus próprios filhos. O amigo não vê isso, não quer ver isso. Bem, leve tudo por quatro dólares. E agora, quanto o senhor me dá pela carroça e pela parelha de animais? Esses baios são bons como o diabo, iguaizinhos que eles são, iguais na cor, iguais no trote! Puxam que é uma beleza, esticando as pernas e o lombo, rápidos que dá gosto! Pela manhã, quando lhes dava na telha, eles ficavam atrás da cerca, de orelha em pé pra ouvir a gente. E as crinas, as crinas pretas! Eu tenho uma filhinha. Ela gostava daquilo! E agora tudo acabou. Eu poderia contar ao senhor uma história engraçada sobre essa minha filhinha e aquele cavalo baio. O amigo ia rir à beça. Está vendo? Aquele ali tem oito anos. O outro tem dez, mas até parecem gêmeos, de tão parecidos. Olha só os dentes deles. Todos bons. E os pulmões, então, nem se fala! Pulmões fortes! As pernas também são um bocado fortes, saudáveis e musculosas. Quanto? Dez dólares? Pelos dois? E pela carroça?... Oh, Jesus Cristo! Prefiro matá-los pra dar a carne pra cachorro comer. Oh, vá lá, fique com eles pelos dez dólares. Leve eles depressa, seu. O senhor está comprando uma meninazinha entrançando a crina deles, tirando a fita dos cabelos dela para amarrá-la na crina dos cavalos, uma meninazinha de cabecinha encostada no pescoço dos animais, de cabeça erguida, roçando-lhes o focinho no rosto dela. O senhor está comprando anos de árduo labor, lides de sol a sol; está comprando uma mágoa que não se pode expressar. Mas olhe, seu: há uma coisa que vai junto com esse montão de troços que comprou, junto com esses baios tão lindos — é uma carga de amargura que crescerá na sua casa e ali florescerá um dia. Nós poderíamos salvar o senhor, mas o senhor nos desprezou, esmagou-nos, e cedo também será esmagado e então nenhum de nós estará aqui para salvá-lo.
E os meeiros iam embora, mãos nos bolsos, chapéus puxados sobre os olhos. Alguns compravam aguardente e sorviam-na com sofreguidão, para resistir com ânimo ao golpe. E eles não riam, não se alegravam. Não cantavam, nem tocavam viola. Eles vinham voltando aos seus sítios, mãos nos bolsos, cabeça baixa, botinas rangendo raivosamente na poeira das estradas.
Quem sabe a gente pode começar de novo, lá naquela terra tão rica, na Califórnia, onde brotam frutos saborosos? Sim, vamo recomeçar.
Mas o senhor não pode recomeçar! Somente uma criança pode encetar uma tarefa assim. O senhor e eu, bem, nós somos o passado. A irritação de um momento, as mil visões — eis o que nós somos. Esta terra, esta terra vermelha, é o que nós somos; e os anos de chuva e os anos de seca, é o que nós somos. Não podemos começar de novo. A amargura que vendemos com os nossos troços ele a comprou, mas também nós a temos ainda. Somos apenas a raiva que sentimos quando os donos das terras nos expulsaram, quando o trator derrubou nossa casa. E assim seremos até morrer. Para a Califórnia ou outro lugar qualquer — cada um de nós aqui é um tambor a bater nossa amargura, caminhando com a nossa desgraça. E algum dia os exércitos da amargura irão pelo mesmo caminho. E eles todos caminharão juntos, e haverá, então, um terror de morte.
Os meeiros arrastavam-se até os seus sítios, através da poeira avermelhada.
Quando tudo que podia ser vendido estava vendido, fogões e camas, cadeiras e mesas, pequenos armários, canos e tanques, ainda havia pilhas de troços, e as mulheres sentavam-se ao redor delas, remexendo-as e olhando-as, as fotografias, espelhos quadrados e — ah, olha ali, um vaso!
Bem, vocês sabem o que a gente pode levar e o que não pode levar. Nós vamos acampar sempre ao ar livre — algumas panelas para se cozinhar, colchões e outras comodidades, uma lanterna, baldes e uma peça de lona. É pra fazer a tenda. Esta lata de querosene vai. Sabe o que é isso aqui? É o fogão. E roupas... levem todas as roupas. E... o rifle? Não vamos sair sem o rifle. Quando tudo se for, sapatos e roupas e comida — até a esperança —, teremos ainda o rifle. Quando o avô veio pra cá — eu já lhe falei? — ele só trouxe sal, pimenta e um rifle. Mais nada. Isso aqui vai. É uma garrafa com água. Basta isso para satisfazer a gente. Dá um jeito nesse caminhão; as crianças e a avó vão no colchão. Ferramentas, uma enxada, e uma serra, uma chave de fenda e alicates. E uma machadinha também. Temos esta machadinha faz mais de quarenta anos. Olhe como ela tá gasta. O resto? Deixe o resto, ou pode queimar tudo.
E vinham as crianças.
Se a Mary levar aquela boneca, aquela boneca velha e suja, eu vou levar o meu arco de índio. Vou, sim. E esse bordão aí, grande, quase do meu tamanho. Posso precisar dele. Tenho ele faz tanto tempo, faz um mês ou talvez um ano. Tenho que levar ele, sim. Como é que vai ser lá na Califórnia?
As mulheres sentavam junto aos restos desprezados, junto aos objetos que não poderiam levar, e olhavam-nos e reviravam-nos. Esse livro. Já meu pai o tinha. Ele gostava tanto dos livros! A marcha do peregrino. Gostava muito de ler ele. Escreveu o nome dele na capa, por dentro. E esse cachimbo, ainda cheirando a fumo forte! E esse quadro... um anjo. Eu olhava pra ele quando tive os primeiros três partos... mas não adiantou muito. Acha que poderíamos levar este cachorrinho de porcelana? A tia Sadie trouxe ele da Feira de St. Louis. Tá vendo? Vê o que ela escreveu nele? Não, acho que não. Aqui está uma carta que meu irmão escreveu um dia antes de ele morrer. E aqui um chapéu bem velho. E estas penas... nunca usamos elas. Não, não temos lugar.
Como poderemos viver sem tudo isso que representa a nossa vida? Como vamos continuar sendo os mesmos sem o nosso passado? Não, deixe tudo. Queime tudo.
Elas ficavam sentadas, olhavam todos esses restos e gravavam-nos na memória. Como saber que coisas as aguardavam lá longe? Como será quando acordarem pela manhã sabendo que o velho salgueiro não mais está no pátio? Pode-se viver sem o salgueiro? Não, não se pode. Aquela mancha ali — a prova de uma dor —, ali no colchão, aquela dor terrível, aquela mancha é uma parte de mim mesma.
E as crianças... se o Sam levar o seu arco indiano e o seu bastão comprido, eu também vou levar duas coisas. Eu escolho aquela almofada. É minha.
Subitamente, ficaram nervosos. Tinham que ir embora rápido. Não se pode demorar mais. Nós não podemos ficar mais tempo aqui. E amontoaram os restos no terreiro e puseram fogo em tudo. E quedaram a olhar como se queimavam, e depois, freneticamente, correram a tomar os veículos e saíram para as estradas poeirentas. A poeira pendia no ar muito tempo depois da passagem dos carros apinhados.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

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