sexta-feira, 23 de junho de 2017

Ulrich

O homem sem qualidades de quem estamos falando chamava-se Ulrich, e Ulrich — não é agradável chamar alguém o tempo todo pelo nome de batismo, se o conhecemos tão pouco por enquanto!, mas seu sobrenome será omitido em consideração a seu pai — dera, na fronteira da meninice e adolescência, numa composição escolar, a primeira prova de sua maneira de ser. A composição tinha como tema um pensa mento patriótico. Na Áustria o patriotismo era assunto muito especial. Pois crianças alemãs aprendiam simplesmente a desprezar as guerras das crianças austríacas, e ensinavam-lhes que as crianças francesas eram netas de libertinos sem fibra, que fogem aos milhares quando um soldado alemão barbudo avança sobre eles. E com papéis trocados, bem como as modificações desejáveis, aprendiam a mesma coisa as crianças francesas, russas e inglesas, que também tinham sido frequentemente vencedoras. Mas crianças são fanfarronas, gostam de brincar de polícia-e-ladrão, e estão sempre dispostas a considerar a família X da rua Y a maior família do mundo, caso façam parte dela. Assim, se deixam influenciar facilmente pelo patriotismo. Mas na Áustria isso era um pouco mais complicado. Pois os austríacos também tinham vencido todas as guerras da sua história, mas depois da maioria dessas guerras tinham feito algum tipo de concessão. Isso faz pensar, e na sua composição sobre amor à pátria Ulrich escreveu que um verdadeiro patriota nunca devia considerar sua pátria a melhor de todas; sim, com um lampejo que lhe pareceu especialmente belo, embora ficasse mais ofuscado por seu brilho do que visse o que estava contido nele, acrescentara àquela frase suspeita mais outra: que provavelmente também Deus gostava de falar do seu mundo no conjunctivus potentialis (hic dixerit quispiam = aqui se poderia objetar...), pois era Deus quem fazia o mundo, pensando que bem podia ser de outra maneira.
Ele sentira muito orgulho dessa frase, mas talvez não se tivesse expressado de maneira muito compreensível, pois causara grande agitação, e quase o afastaram da escola, embora não chegassem a tomar essa decisão por não descobrirem se aquele comentário inadequado era blasfêmia contra a pátria ou contra Deus. Naquele tempo, ele estava sendo educado no aristocrático Ginásio Teresiano, que fornecia os mais nobres esteios do Estado. E seu pai, furioso com a vergonha causada por aquele filho degenerado, mandou Ulrich para o estrangeiro, para um pequeno colégio belga, localizado numa cidade desconhecida e que através de uma administração inteligente e espírito comercial, conseguia a preços baixos grande número de alunos transviados. Lá Ulrich aprendeu a ampliar internacionalmente seu desprezo pelos ideais alheios.
Desde então tinham-se passado dezesseis ou dezessete anos, rápidos como nuvens no céu. Ulrich não lamentava por eles, nem deles se orgulhava; simplesmente os contemplava com espanto, no seu trigésimo segundo ano de vida. Entrementes estivera em vários lugares, algumas vezes por breve tempo ficara em casa, e por toda parte fizera coisas de valor e coisas inúteis. Já se insinuou que era matemático, e não se precisa por enquanto dizer mais sobre isso, pois em toda a profissão que não é exercida por dinheiro mas por amor, chega um momento em que o acúmulo dos anos parece levar a nada. Como esse momento se estendia por um período mais longo, Ulrich lembrou que se atribui à terra natal a capacidade misteriosa de dar raiz e autenticidade aos pensamentos, e instalou-se nela com a sensação de um peregrino que se senta num banco para toda a eternidade, embora saiba que logo vai se levantar dali.
Quando, então, arrumou sua casa, como diz a Bíblia, teve uma experiência pela qual na verdade estava esperando. Entregara-se à agradável atividade de organizar sua devastada pequena propriedade a partir do zero, segundo seu próprio capricho. Desde a reconstrução em estilo puro até a arbitrariedade total, possuía todas as premissas para fazer o que quisesse, e na sua mente ofereciam-se todos os estilos, desde o assírio ao cubista. O que escolher? O homem moderno nasce e morre numa clínica; portanto, também deve morar como numa clínica! Um arquiteto famoso acabava de estabelecer este postulado; outro decorador reformista exigia que se colocassem paredes móveis, dizendo que o homem, convivendo com outros, tinha de aprender a confiar, e não devia confinar- se de maneira separatista. Naquele momento começara uma nova era (pois elas começam a todo instante!), e uma nova era pedia um novo estilo. Para sorte de Ulrich, o castelinho, assim como estava, já constava de três estilos superpostos, de modo que não se podia obedecer a todas essas exigências; ainda assim ele se sentia instigado pela responsabilidade de organizar uma casa, e a ameaça “Dize-me como moras e dir-te-ei quem és”, que lera tantas vezes em revistas de arte, pairava sobre sua cabeça. Depois de muito se ocupar dessas revistas, decidiu que era melhor trabalhar pessoalmente na construção da sua personalidade, e começou a desenhar seus futuros móveis. Mas assim que imaginava uma forma impressionante e impetuosa, ocorria-lhe que podia em seu lugar colocar uma forma utilitária, técnica e menor; e quando desenhava uma despojada forma de concreto, lembrava-se das magras formas primaveris de uma menina de treze anos, e começava a sonhar em vez de tomar decisões.
Era — numa circunstância que não o afetava muito a sério — a conhecida incongruência das ideias, e sua difusão sem um ponto central, característica da atualidade, cuja singular aritmética vai de cem a mil sem ter a unidade. Por fim ele só conseguia imaginar salas inexequíveis, quartos giratórios, decorações caleidoscópicas, caixas de mudança para a alma, e suas ideias eram cada vez mais inconsistentes. Finalmente chegara ao ponto que o atraía. Seu pai teria dito mais ou menos assim: aquele a quem permitem fazer tudo o que deseja, em breve não sabe mais o que desejar. Ulrich repetia isso com grande prazer. Aquela sabedoria de velho lhe pareceu uma ideia extraordinariamente nova. O homem precisa ser limitado em todas as suas possibilidades, planos e sentimentos, por preconceitos, tradições, dificuldades e limitações de toda sorte, como um louco na sua camisa-de-força; solidez; na verdade, é difícil perceber o alcance dessa ideia! Bem, o homem sem qualidades, que voltara à sua terra, deu também o segundo passo para se deixar modelar de fora, pelas condições da vida. Nesse momento entregou a decoração de sua casa ao capricho dos fornecedores, convencido de que cuidariam da tradição, dos preconceitos e limitações. Apenas renovou pessoalmente linhas provindas de tempos remotos, as escuras galhadas de cervos sob as abóbadas brancas do pequeno vestíbulo, ou o severo teto do salão, e acrescentou tudo o que lhe parecia útil ou confortável.
Quando estava tudo pronto, pôde balançar a cabeça e indagar-se: “Então é isso que vai ser a minha vida?”
Possuía um pequeno palácio encantador — quase se teria de chamá-lo assim, pois era tudo o que se pensa de uma residência de bom gosto para uma capital, segundo imaginação dos mais importantes vendedores de móveis, tapetes e instalações. Faltava apenas um fator: não tinham dado corda àquele fascinante relógio; pois, se tivessem, haveria coches de altos dignitários e damas aristocráticas subindo a rampa de acesso, haveria lacaios saltando dos estribos e perguntando a Ulrich, com certa suspeita:
Moço, onde está o seu patrão?
Ele voltara da lua e imediatamente se estabelecera como se ainda estivesse lá.
Robert Musil, in O homem sem qualidades

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