quinta-feira, 22 de junho de 2017

O homem está sozinho

Na Antiguidade, nas origens da poesia, o epos constituiu a primeira consagração do feito humano. Para propiciar o sucesso de suas empresas, os homens celebraram o primeiro vencedor das dificuldades, o herói: não deus, mas homem, ainda que aparentado com os deuses — homem na medida em que seu destino se cumpre na Terra, é um percurso terrestre eriçado de obstáculos. A épica antiga narrava o primeiro ato do homem para sair do caos do indistinto, a luta contra uma natureza virgem, ainda povoada de monstros, uma natureza amiga ou inimiga, conforme nela se manifeste a ajuda dos deuses favoráveis ou a hostilidade dos deuses adversos. Também o choque contra os outros homens, as batalhas, a história, não passam de manifestações terrestres de dissídios divinos: mas os duelos dos heróis, seus itinerários aventurosos, a matéria, em suma, da narrativa, é toda humana, desdobra-se segundo as leis da Terra.
A épica moderna já não conhece deuses: o homem está sozinho e tem diante de si a natureza e a história. E, se a esta altura seria fácil dizer que natureza e história são os deuses do mundo moderno, encarnações renovadas das antigas divindades, podemos logo rebater dizendo que tal divinização se encontra mais facilmente nas páginas dos filósofos do que naquelas dos escritores. A mesma coisa seja dita no que tange à divinização do primeiro termo: a consciência, a razão humana. Os grandes romances parecem nascer pontual e propositadamente para corrigir as idolatrias intentadas pela filosofia, para olhá-las com o olhar crítico e relativo do homem que já não se considera o centro do universo. O romance do século XIX não podia decerto nascer sem ter atrás de si o trabalho dos escritores e dos filósofos do século XVIII, que haviam fundado uma nova noção do ânimo humano, criando — podemos dizer — a dimensão do indivíduo, que haviam fundado uma nova visão da natureza e uma nova consciência da história. Mas também é verdade que a geração pós-napoleônica, que com Stendhal e Puchkin inaugura o novo romance, já dissolve o caráter providencial da natureza de Rousseau e o da história do nascente historicismo, para dar destaque, diante de um cenário natural e histórico que é apenas teatro de ocasiões para o indivíduo, a heróis nada exemplares na complexidade de suas paixões, na forte carga vital de seu egotismo: em Puchkin, fundamentado na sinceridade e no ser quem se é; em Stendhal, no sutil cálculo secreto, e talvez na hipocrisia cultivada com o rigor de uma virtude.
Italo Calvino, in Assunto encerrado

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