quinta-feira, 29 de junho de 2017

Encorajados pelo racionalismo de Alain

Sartre viera me ver no Limousin; hospedara-se no hotel Boule d’Or, em Saint-Germain-les-Belles; para evitar falatórios, encontrávamo-nos a boa distância da cidade, no campo. Com que alegria, pela manhã, eu descia correndo os gramados do parque, pulava outeiros, atravessava os prados ainda úmidos onde tantas vezes, e não raro amargamente, eu ruminara a minha solidão! Sentávamo-nos na relva e conversávamos. Não imaginara, no primeiro dia, que, longe de Paris e de nossos colegas, essa ocupação pudesse bastar-me. “Levaremos livros e leremos”, sugerira eu. Sartre ficara indignado; rejeitara também todos os meus projetos de passeio; era alérgico a clorofila, o verde das pastagens irritava-o, só o tolerava com a condição de esquecê-lo. Pois que fosse assim. Por pouco que me encorajasse, o discurso não me assustava; retomamos a conversa iniciada em Paris e logo me dei conta de que, ainda que continuasse até o fim do mundo, o tempo me pareceria curto demais. Mal a manhã acabava de nascer e já o sino do almoço tocava. Ia comer em casa; Sartre comia pão de centeio e mel, ou queijo que minha prima Madeleine depositava com mistério num pombal abandonado ao lado da “casa de baixo”; ela gostava do romanesco. Mal desabrochava e já fenecia a tarde, caía a noite. Sartre voltava ao hotel; jantava ao lado dos caixeiros-viajantes. Eu dissera a meus pais que estávamos trabalhando em um livro que seria uma crítica ao marxismo. Esperava amansá-los, lisonjeando-lhes o ódio ao comunismo, mas não os convenci em absoluto. Quatro dias depois da chegada de Sartre, vi-os surgindo nos limites do prado em que estávamos instalados; aproximaram-se. Meu pai tinha um ar resoluto mas um tanto embaraçado com seu palheta amarelado. Sartre, que nesse dia usava uma camisa de um rosa agressivo, pôs-se em pé, com o olhar provocante. Meu pai pediu-lhe cortesmente que deixasse a região; o povo falava, comentava, e minha aparente má conduta prejudicava a reputação de minha prima, que procuravam casar. Sartre retorquiu com vivacidade mas sem muita violência, pois estava decidido a não adiantar em uma só hora sua partida. Limitamo-nos a ter encontros um pouco mais clandestinos num longínquo bosque de castanheiros. Meu pai não voltou a insistir e Sartre ficou ainda uma semana no Boule d’Or. Depois disso, escrevemo-nos diariamente.
Quando tornei a encontrá-lo, em outubro, tinha liquidado meu passado; 3 empenhei-me por inteira em nosso caso. Sartre devia partir em breve para o serviço militar; entrementes estava de férias. Residia na rua Saint-Jacques, com seus avós Schweitzer, e encontrávamo-nos pela manhã no jardim Luxemburgo cinzento e dourado, sob o olhar branco das rainhas de pedra; só nos largávamos tarde da noite. Andávamos por Paris e continuávamos a conversar, considerando o pé em que estávamos em relação a nós mesmos, nossa ligação, nossa vida e nossos futuros livros. Hoje, o que me parece mais importante nessas conversas são menos as coisas que dizíamos do que as que encarávamos como resolvidas; não estavam, enganávamo-nos em relação a quase tudo. Para nos definir, cumpre examinar esses erros, pois exprimiam uma realidade: a de nossa situação.
Já o disse: Sartre vivia para escrever; tinha por missão testemunhar todas as coisas e retomá-las por sua conta e à luz da necessidade; a mim, era prescrito emprestar minha consciência ao múltiplo esplendor da vida, e eu devia escrever para arrancá-la do tempo e do nada. Essas missões impunham-se a nós com uma evidência que nos garantia sua realização; sem nos formular, aderíamos ao otimismo kantiano: deves, logo podes. E efetivamente, como a vontade duvidaria de si mesma no momento em que se decide e se afirma? É uma só coisa então querer e acreditar. Por isso mesmo confiávamos no mundo e em nós mesmos. Éramos contra a sociedade em sua forma atual; mas esse antagonismo nada tinha de melancólico: implicava um robusto otimismo. O homem devia ser recriado e essa invenção seria em parte obra nossa. Não pensávamos em contribuir para isso senão com livros; os negócios públicos nos entediavam muitíssimo, mas esperávamos que os acontecimentos se desenrolassem segundo nossos desejos, sem que tivéssemos que nos meter neles. A esse respeito, no outono de 1929, partilhávamos a euforia da esquerda francesa. A paz parecia definitivamente assegurada. A expansão do Partido Nazista na Alemanha representava apenas um epifenômeno sem gravidade. O colonialismo seria liquidado em pouco tempo: a campanha iniciada por Gandhi na Índia e a agitação comunista na Indochina nos garantiam isso. A crise de virulência excepcional que sacudia o mundo capitalista pressagiava que essa sociedade não aguentaria muito tempo. Já nos afigurava vivermos na idade de ouro que constituía a nossos olhos a verdade recôndita da História, e que ela se limitaria a desvendar.
Ignorávamos em todos os domínios o peso da realidade. Vangloriávamo-nos de uma liberdade radical. Acreditamos durante tanto tempo e com tanta tenacidade nessa palavra que foi preciso ver de perto o que nela púnhamos.
Cobria uma experiência real. Em toda atividade descobre-se uma liberdade, particularmente na atividade intelectual, porque dá pouca margem a repetição. Tínhamos trabalhado muito; sem cessar, fora preciso compreender e inventar novamente. Tínhamos uma intuição prática da liberdade, irrecusável; nosso erro foi não a encerrar dentro de seus justos limites; ficamos presos à imagem da pomba de Kant: o ar que lhe resiste, longe de travar, suporta seu voo. O dado apareceu-nos como a matéria de nossos esforços, não como seu condicionamento; pensávamos não depender de nada. Assim como nossa cegueira política, esse orgulho espiritualista explica-se antes de tudo pela violência de nossos projetos. Escrever, criar: não ousaríamos, na verdade, arriscar-nos a essa aventura se não tivéssemos absoluta certeza de nós mesmos, de nossos fins e de nossos meios. Nossa audácia era inseparável das ilusões que a sustentavam, e as circunstâncias as haviam favorecido juntas. Nenhum obstáculo exterior jamais nos forçara a ir de encontro a nós mesmos; queríamos conhecer e exprimir-nos; estávamos empenhados até o pescoço nessa tarefa. Nossa existência satisfazia tão bem nossos desejos que nos parecia que a tínhamos escolhido; daí acharmos que sempre se submeteria a nossos desígnios. A sorte que nos servira mascarava a adversidade do mundo. Por outro lado, interiormente, não sentíamos empecilhos. Eu mantinha boas relações com meus pais, mas eles tinham perdido todo domínio sobre mim; Sartre nunca conhecera o pai; nem sua mãe nem seus avós tinham encarnado a lei a seus olhos. Em certo sentido, éramos ambos sem família e tínhamos erigido essa situação em princípio. Havíamos sido encorajados pelo racionalismo cartesiano que Alain nos transmitira e que tínhamos abraçado justamente porque nos convinha. Nenhum escrúpulo, nenhum respeito e nenhuma aderência afetiva nos impediam de tomarmos nossas resoluções à luz da razão e de nossos desejos; não percebíamos em nós nada de opaco ou turvo; pensávamos ser pura consciência e pura vontade. Essa convicção era fortalecida pelo arrebatamento com o qual apostávamos no futuro; não estávamos alienados a nenhum interesse definido, porquanto o presente e o passado deviam ser sempre ultrapassados. Não hesitávamos em contestar todas as coisas e nós mesmos sempre que a ocasião o solicitava; criticávamo-nos e condenávamo-nos com desenvoltura, uma vez que toda mudança nos afigurava um progresso. Como nossa ignorância dissimulava a maior parte dos problemas que nos deveriam ter inquietado, contentávamo-nos com essas revisões e imaginávamo-nos intrépidos.
Simone de Beauvoir, in A força da idade

Nenhum comentário:

Postar um comentário