sexta-feira, 30 de junho de 2017

Que me quereis, perpétuas saudades?

Que me quereis, perpétuas saudades?
Com que esperança inda me enganais?
Que o tempo que se vai não torna mais,
E se torna, não tornam as idades.

Razão é já, ó anos, que vos vades,
Porque estes tão ligeiros que passais,
Nem todos pera um gosto são iguais,
Nem sempre são conformes as vontades.

Aquilo a que já quis é tão mudado,
Que quase é outra cousa, porque os dias
Têm o primeiro gosto já danado.

Esperanças de novas alegrias
Não mas deixa a Fortuna e o Tempo errado,
Que do contentamento são espias.
Luís Vaz de Camões

Propaganda de graça


Escrevendo praticamente a vida toda, a máquina de escrever ganha uma importância enorme. Irrito-me com esta auxiliar ou então agradeço-lhe fazer o papel de reproduzir bem o que sinto: humanizo-a.
Quando, há muito tempo, comecei a ser uma profissional de imprensa, tive uma máquina Underwood semiportátil. Essa máquina eu amei mesmo: ela durou tanto que aguentou eu escrever sete livros. Não esquecendo que tirei cópias e cópias do que escrevi. E que um livro meu, por exemplo, que deu em datiloscrito perto de 400 páginas, eu copiei 11 vezes porque, para esclarecer a mim mesma o que quero dizer, faço cópias e cópias. Ao final de sete livros, que valem 20 na máquina, esta começou a ter uma espécie de reumatismo. Comprei então uma Olympia portátil. Essa escreveu cinco livros, fora todas as muitas outras coisas que escrevi. Depois pareceu cansada e adoecia de vez em quando, precisando de um mecânico para auxiliá-la a continuar. Continuou bem mas me cansei de seu tipo pequeno demais.
Tive depois uma Remington portátil mas fazia ao bater dos dedos um barulho de lata velha que me cansava. Troquei-a com Tati de Morais por uma Olivetti que é uma beleza em matéria de som: abafado, leve, discreto. Posso bater máquina à noite porque ela não acorda ninguém. Não me ofende com um som agudo que outras máquinas têm. Acho que de agora em diante só vou escrever nela. E se ela se cansar, compro outra igual. Como máquina é parecida com uma pessoa e às vezes de puro cansaço enguiça, o ideal era comprar outra Olivetti como máquina suplente porque não posso me dar ao luxo de parar de escrever. Máquinas, qualquer uma, são um mistério para mim. Respeito-lhes o mistério.
E voltei, agora, não sei por quê, à velhinha Olympia portátil. Sou volúvel em matéria de máquinas.
Clarice Lispector, in Aprendendo a viver

Sangue novo na MPB: Zé Manoel - O Ouro e a Madeira

Sou um escritor de verdade (trecho)

Não existe nada entre Jenny e eu. Moro de um lado do corredor, ela mora do outro, no andar superior de uma casa de dois andares. O outro aposento aqui em cima é o banheiro. Quando cheguei aqui pensei que podia haver algo. Ouvi o ruído de saltos altos no corredor e no quarto ao lado, e, no banheiro, vi umas coisas azul-pálidas penduradas para secar. Eu as toquei, pois me cativavam, e sua maciez e fragrância trouxeram ideias agradáveis à minha imaginação. Mas nada aconteceu.
Quando ouvia o toc-toc dos saltos altos, eu estava sentado no meu quarto, sempre à noite, e batia violentamente à máquina de escrever, martelava com toda força, escrevendo qualquer coisa que me viesse à cabeça, qualquer coisa. O Discurso de Gettysburg, ou um soneto de Shakespeare, ou qualquer outra coisa, simplesmente batendo nas teclas com muita força para que o som viajasse, pois existem aqueles que vão saber que um escritor está no quarto pelo ruído de sua máquina de escrever e vão gostar do som e virão à sua porta e perguntarão a ele se escreve, e o que escreve — quero dizer, mulheres —, pois isso me aconteceu muitas vezes, já que morei aqui e ali nesta grande cidade, em casas, apartamentos e hotéis, e sei que o negócio de martelar uma máquina de escrever é invariavelmente bem-sucedido, invariavelmente trazendo alguém, um homem ou uma mulher, geralmente uma mulher solitária e curiosa; e, às vezes, muitas vezes, um homem, um homem raivoso que manda você parar com aquilo para que ele possa conseguir algum sono.
Eu morava nesta casa há três dias, até que vi Jenny. O ruído da minha grande máquina nunca a atraiu, nem uma vez sequer a fez parar à minha porta e se perguntar, talvez investigar. Isso me surpreendeu e pensei em outros métodos. Mas, de um modo ou de outro, todas as coisas saem da minha máquina e eu nada mais podia fazer; então, bati as teclas ainda com mais força. Isso foi de noite, depois que a ouvi ir para a cama. Mas o barulho nunca a perturbou. Aparentemente ela dormia sem interrupção. Por fim, foi ela que me atraiu.
Era o telefone. Toda noite ele tocava sem parar ao pé das escadas e era sempre para ela. Com o tempo, fraquejei, afastei meus dedos doloridos do teclado, fiquei parado à porta e ouvi sua conversa telefônica. Dessa vez falava com uma pessoa chamada Jimmie.
Olá, Jimmie, queridão!
Olá, Jimmie, seu menino safado!
Pô, Jimmie, menino safado!
Jimmie! Seu safadão!
Ouvi aquele tipo de coisa por muito tempo, chocado com a estupidez de um diálogo tão banal. Assim que ela desligou, corri de volta para a máquina de escrever e comecei a martelar de novo. Mas não adiantou nada. Seus pés subiram as escadas e atravessaram o corredor sem nenhuma pausa, e então a porta se fechou.
Depois conheci esse Jimmie. Era um tipo boçal, um dândi que usava casacos xadrez e gravatas com estampas selvagens, um salafrário que não se impressionou com a ousada simplicidade de meus pés descalços em chinelos caseiros, embora meus pés estivessem sobre a mesa de Jenny e eu fumasse um cachimbo maior e mais comprido do que qualquer outro cachimbo na cidade de Los Angeles. Jimmie era um agente de assinaturas de revistas.
Eu vendo para todas as figuraças — disse ele. — Anne Harding é uma de minhas clientes.
É claro que ele esperava que eu caísse da cadeira com isso. Fumei em silêncio, enquanto ele e Jenny esperavam meu comentário.
Quem? — falei. — Não me diga que é a atriz de cinema? Muito trágico. Muito trágico mesmo.
Depois Jenny me contou ainda mais dessa chiquérrima da Anne Harding. — Ela compra todas as suas revistas de Jimmie. Dúzias de revistas.
Isso — comentei — curiosamente não impressiona nem um pouco. Mesmo o fato de que, sem dúvida, muitas histórias que eu escrevi foram publicadas nestas revistas, não consegue despertar meu entusiasmo.
Aqui, de novo, a sagaz urbanidade de minha observação foi lançada em solo caipira. Mas não importava, porque eu não estava muito interessado e sua amizade por Jimmie não era da minha alçada.
Vou contar a verdade sobre minha primeira conversação com Jenny. Foi na noite em que a senhoria nos apresentou. Convidei Jenny para tomar uma taça de vinho em meu quarto. Na verdade, tentei chocá-la. Ela fumava um cigarro apoiada sobre a cômoda, enquanto eu servia o vinho. Olhei de frente para ela.
Incomoda-se se eu a chamar de Jenny? — perguntei. — O nome tem um sabor divertido e bucólico.
De modo algum! — sorriu, porque não sabia o significado de bucólico. Passei a ela a taça de vinho.
Hummm! — ela disse. — Obrigada!
Eu estudava seu rosto de perto, examinando-o como um estudante da humanidade, um escritor, o examinaria. Isso a deixou meio constrangida. Ergueu a taça.
A você! — brindou. — Sei que deve ser um grande escritor.
Toquei sua taça e ri. No momento tomei consciência de que, afinal, a garota não era completamente sem esperança.
A questão repousa na História — expliquei. — Eu vivo apenas no passado e no futuro.
Esvaziamos nossas taças. Servi mais duas vezes.
Jenny — falei. — Eu sou um homem da Verdade. Permita-me fazer uma observação sobre você.
Ela ergueu a taça.
Pode atirar, sr. Charles Dickens! Me acerte com o cano duplo!
Jenny — continuei. — Sou como meu grande predecessor, Huneker. Nada na face da Terra me incomoda mais do que uma demi-vierge provocadora.
Demi-vierge? — perguntou. —O que é uma demi-vierge?
Uma amásia — e sorri.
Amásia? — disse ela. — Eu passo, professor. O que é isso?
Sacudi a cabeça com tristeza.
Uma amásia — falei — é uma megera.
E o que é uma megera?
Uma megera — falei — é uma hetaira.
Me pegou de novo, professor. O que é uma hetaira?
Uma hetaira é uma meretriz.
Uma rameira? — franziu a testa e então sorriu. — Tem um som bonito, mas ainda estou boiando.
Uma Dalila — falei. — Uma Taís. Uma Messalina. Uma Jezebel.
Vamos lá de novo — disse ela. — Tente mais uma vez.
O dicionário está bem ali. Consulte.
Ela colocou a taça na mesa e correu para o dicionário.
Claro! — falou. — Que palavra?
É melhor tentar meretriz — falei. Ela consultou.
E então fechou o dicionário.
Mas o que isso tem a ver comigo?
Não estou seguro de que o que respondi era verdade. Mas ninguém pode negar que tinha o som e a força de uma análise surpreendente, uma bomba e, verdade ou mentira, digna de uma explosão, simplesmente pelo efeito.
Jenny — falei. — Toda a raça feminina é uma meretriz embrionária. A tendência é poderosa e, a partir da puberdade, as mulheres devem combater isso como combateriam o tifo.
Ela depôs a taça de vinho, apagou o cigarro e saiu do quarto.
Você é horrível — disse. — Simplesmente medonho.
John Fante, in A grande fome: Contos (1932-1959)

Porta de entrada

Tirinha de Andrício de Souza

Nada é simples

A verdade é que nas questões filosóficas nada é simples. Toda solução simples é uma solução falsa. E em geral é uma solução preguiçosa – como é o ceticismo que nos livra de todo o dever de investigação longa e árdua, porque para ele nada há para investigar. A realidade é terrivelmente complexa. Só por um trabalho longo e árduo pode o homem apropriar-se de uma parte dela, não muito, mas sempre alguma coisa.”
J. M. Bochenski

quinta-feira, 29 de junho de 2017

O dia dos cachorros (trecho)

O derrame de cachorros foi o primeiro sinal forte de que os homens não eram aqueles anjos que Amâncio estava querendo impingir. Mesmo se fizeram aquilo por simples brincadeira, mostraram completa desconsideração pelos direitos alheios.
Dois ou três dias antes o povo notou que os cachorros da tapera estavam ficando inquietos, turbulentos, aflitos como em véspera de uma grande caçada. À noite o alarido era tal que chegava a perturbar o sossego na cidade. A impressão geral era que os homens não estavam dando comida suficiente aos bichos. Seria por maldade? Ou distração? Ou falta de recursos? Talvez Geminiano pudesse dar uma explicação?
Cachorros? Esconjuro. Capetas. Capetas de quatro pés. Cachorros. — Foi só o que se conseguiu de Geminiano.
Quantos são, Gemi? Parece que são muitos.
Muitos? Dobre e ponha mais.
Uma dúzia? Dúzia e meia?
Que dúzia e meia! Dúzia e meia morre por dia.
Morre de quê?
Morre. Cai no chão, estrebucha e morre.
Onde arranjaram tantos?
Eu sei? Recebem.
De onde? Quem traz?
De longe. Do inferno. Quem traz é o capeta. Só pode ser. Cachorros! Peste!
Não adiantava mais falar com Geminiano. Aquele trabalho sem fim estava bulindo com o juízo dele. Ele agora preferia falar sozinho a conversar, e qualquer dia sairia por aí gritando e xingando a esmo, como o velho Inácio Medrado. Parece que toda a cidade precisa ter um louco na rua pra chamar o povo à razão; agora que Inácio não existia mais, Geminiano estava exercitando para preencher o lugar. Era certo que os homens tinham muito cachorro na tapera, a latomia que faziam não deixava dúvida; mas não podiam estar recebendo cachorros todos os dias sem parar, faltava o cabimento.
Os cachorros baixaram de repente, apanhando todo mundo de surpresa. A cidade estava engrenando na rotina do tomar café, do regar horta, do varrer casa, do arrear cavalo, quando os latidos rolaram estrada abaixo. As pessoas correram para as janelas, as cercas, os barrancos e viram aquela enxurrada avançando rumo à ponte, cobrindo buracos, subindo rampas, contornando pedras, aos destrambelhos, latindo sempre.
Nossa! É cachorro! É cachorro! E vem pra cá!
Ih, é cachorro! Escapuliram!
Os cachorros!
Feche a porta! Os cachorros!
Os meninos! Chame os meninos!
Corre, gente!
Fecha tudo!
Prepare porretes!
Portas batiam em toda parte, gente gritava, criança chorava, galinhas em pânico, mães ralhavam, batiam, sacudiam, rezavam, homens iam e vinham correndo, procurando espingarda, garrucha, porrete, outros apenas acendiam um cigarro e iam para a janela espiar.
Apesar da curiosidade, ninguém se aventurou a sair de casa. No largo e nas ruas desertas apenas alguns animais pastavam apáticos, alheios à ameaça ou talvez confiantes na eficiência dos cascos. Até os pássaros, percebendo alguma coisa no ar, retiraram-se prudentes para os galhos mais altos das árvores. Borboletas inocentes enfeitavam as margens do rego, e ali morreriam em poucos minutos pisadas, mordidas, desmanchadas como flores depois de ventania. O palco estava armado para os cachorros, e eles o ocuparam como demônios alucinados.
A vaga de pelos, de dentes, de patas, de rabos, de uivos chegou inteira e logo se espalhou por toda a parte farejando, raspando, acuando, regando pedras, barrancos, muros, raízes de árvores, unhando portas, choramingando, erguendo-se nas patas traseiras para ver se descobriam nas salas alguma coisa digna de atenção — e era repelida pelos moradores a varadas, lambadas, pauladas, até a tapas e chineladas.
Escorraçados da frente, os cachorros surgiam nos quintais quebrando plantas, revolvendo hortas, derrubando cercas, pulando muros, perseguindo galinhas, matando pintos, parando de vez em quando para retirar chumaços de penas da boca com as patas ou pelo processo de esfregar o focinho no chão. Os homens tentavam espantá-los a pedradas, apanhavam uma pedra e ficavam tontos com ela na mão, não sabendo para que lado jogar, os cachorros eram muitos e vinham de todos os lados, nem tomavam conhecimento da gente, pareciam estar à procura de alguma coisa mais importante. Às vezes se ouvia um tiro e um ganido, que o alarido geral abafava.
Era impossível saber quantos seriam, quem tentou calcular por alto desistiu alarmado, eles estavam sempre passando e pareciam nunca acabar de passar. Pelo meio da manhã o cheiro de pelo suado, de urina concentrada, de estrume pisado era tão forte que invadia as casas e obrigava as pessoas a queimarem ervas para espantar a morrinha.
Fechadas em casa, abanando-se contra a fumaça, enervadas com os latidos, as pessoas tapavam os ouvidos, pensavam e não conseguiam compreender aquela inversão da ordem, a cidade entregue a cachorros e a gente encolhida no escuro, sem saber o que aconteceria a seguir. Às vezes um cachorro aparecia dentro de uma casa, vindo não se sabe por onde, pondo as pessoas em pânico. O cachorro olhava para um, para outro, escolhia uma pessoa, chegava-se para ela, abanando o rabo. A pessoa se encolhia, guardava as mãos, as pernas, e não achava voz para espantá-lo. O cachorro insistia, farejava, esperando: nenhum agrado vinha, ele desistia e se retirava desapontado, a cabeça baixa, o rabo quase colado nas pernas. Outros entravam por um lado, varavam a casa e procuravam saída pelo outro lado, riscando a porta com as patas, ajudando com o focinho, ganindo o tempo todo, até que alguém criava coragem, abria a porta e ele saía disparado atrás de uma caça invisível. Houve casos também de cachorros entrando numa casa, indo direto aos quartos e saindo com chinelas, sapatos, roupas, tudo o que pudessem agarrar com a boca, lençóis eram arrastados pelos quintais, estraçalhados em espinhos de roseiras ou mandacaru, lambuzados na lama dos regos e afinal abandonados em qualquer parte, quando já não serviam para nada.
Outros parece que entravam numa casa apenas para descarregar a bexiga; chegavam, farejavam, escolhiam o lugar, às vezes até um par de botinas encostado num canto, e calmamente se aliviavam; ou rodavam, rodavam no meio da sala, o corpo encurvado no meio, as pernas traseiras abertas, espremiam, largavam uns charutinhos ou uma broa; satisfeitos com o resultado, raspavam as patas duas, três vezes e saíam sem olhar para ninguém, os donos da casa que providenciassem a limpeza. Eram desacatos que as pessoas toleravam resignadas, consolando-se em pensar que não há mal que sempre dure.
Mas vendo que os cachorros não tinham pressa de ir embora, o povo começou a mudar de atitude. Os porretes, as correias, as espingardas iam sendo escondidos e substituídos por tentativas de afagos, palavras mansas, agrados de comida. Gente se amontoava nas janelas assoviando para eles, estalando os dedos, esticando a mão para alisá-los com medo, é verdade, mas desejando receber um abano de rabo. Muitos iam à cozinha buscar qualquer coisa de comer para jogar aos pés deles. De repente ficou parecendo que todo mundo adorava cachorro, quanto mais melhor, e só tinha na vida a preocupação de fazê-los felizes. Se uma criança desavisada apanhava o chicote preparado pelo pai e ameaçava um cachorro mais atrevido, era imediatamente obstada e castigada com o mesmo chicote. A ordem era respeitar os cachorros. Foi um tempo difícil aquele para os puros, os ingênuos, os de boa memória.
Quando foi ficando claro que os cachorros não estavam interessados em morder ninguém (o máximo que faziam era rosnar e mostrar os dentes para quem os incomodasse inadvertidamente), mas apenas em dar vazão à energia represada na disciplina da tapera, as pessoas foram criando coragem e saindo de casa desarmadas, e até já achavam graça nos desatinos e bodejos dos bichos. Vê-los perseguindo galinhas nos quintais ficou sendo um espetáculo considerado divertido. Quando uma galinha conseguia escapar para cima de um muro, de um cafezeiro, para o meio de uma moita qualquer, e lá ficava ofegante se refazendo do susto, sempre aparecia alguém com uma vara para espantá-la, e a perseguição recomeçava. Frequentemente uma galinha já manca, de asa despencada e muitas falhas de penas pelo corpo era apanhada e entregue na boca de um cachorro; e geralmente o cachorro distinguido com a prenda apenas a cheirava e virava as costas.
Nas ruas, se um cachorro se aproximava de um chafariz, não faltava quem corresse com as mãos em cumbuca para poupá-lo do incômodo de beber da bica. Os cachorros de Manarairema, antigos donos daquelas ruas, também sofreram grandes humilhações. Quando atacados por um dos estranhos eles não podiam reagir nem se defender, bastava rosnarem e já os donos vinham correndo castigá-los pelo atrevimento. Eles tinham de correr ou se deixar morder passivamente, se não quisessem levar pauladas.
Cachorros estranhos dormindo nas passagens eram respeitados mais do que crianças ou velhos, as pessoas passavam nas pontas dos pés para não acordá-los, muita gente entrava e saía de casa pelas janelas ou dando volta pelos fundos para não passar por cima deles. Muita almôndega macia, fritada em boa gordura, lhes foi servida em prato de louça, como se faz com hóspedes de categoria. Toda a cidade estava praticamente a serviço dos cachorros, tudo o mais parou, ficou adiado, relegado, esquecido. Qualquer cachorro pelado, sujo, sarnento, contanto que fosse estranho, encontrava quem o elogiasse por qualidades que ninguém via mas que todos confirmavam. Era uma grande vantagem ser cachorro estranho em Manarairema naqueles dias.
José J. Veiga, in A hora dos ruminantes

Encorajados pelo racionalismo de Alain

Sartre viera me ver no Limousin; hospedara-se no hotel Boule d’Or, em Saint-Germain-les-Belles; para evitar falatórios, encontrávamo-nos a boa distância da cidade, no campo. Com que alegria, pela manhã, eu descia correndo os gramados do parque, pulava outeiros, atravessava os prados ainda úmidos onde tantas vezes, e não raro amargamente, eu ruminara a minha solidão! Sentávamo-nos na relva e conversávamos. Não imaginara, no primeiro dia, que, longe de Paris e de nossos colegas, essa ocupação pudesse bastar-me. “Levaremos livros e leremos”, sugerira eu. Sartre ficara indignado; rejeitara também todos os meus projetos de passeio; era alérgico a clorofila, o verde das pastagens irritava-o, só o tolerava com a condição de esquecê-lo. Pois que fosse assim. Por pouco que me encorajasse, o discurso não me assustava; retomamos a conversa iniciada em Paris e logo me dei conta de que, ainda que continuasse até o fim do mundo, o tempo me pareceria curto demais. Mal a manhã acabava de nascer e já o sino do almoço tocava. Ia comer em casa; Sartre comia pão de centeio e mel, ou queijo que minha prima Madeleine depositava com mistério num pombal abandonado ao lado da “casa de baixo”; ela gostava do romanesco. Mal desabrochava e já fenecia a tarde, caía a noite. Sartre voltava ao hotel; jantava ao lado dos caixeiros-viajantes. Eu dissera a meus pais que estávamos trabalhando em um livro que seria uma crítica ao marxismo. Esperava amansá-los, lisonjeando-lhes o ódio ao comunismo, mas não os convenci em absoluto. Quatro dias depois da chegada de Sartre, vi-os surgindo nos limites do prado em que estávamos instalados; aproximaram-se. Meu pai tinha um ar resoluto mas um tanto embaraçado com seu palheta amarelado. Sartre, que nesse dia usava uma camisa de um rosa agressivo, pôs-se em pé, com o olhar provocante. Meu pai pediu-lhe cortesmente que deixasse a região; o povo falava, comentava, e minha aparente má conduta prejudicava a reputação de minha prima, que procuravam casar. Sartre retorquiu com vivacidade mas sem muita violência, pois estava decidido a não adiantar em uma só hora sua partida. Limitamo-nos a ter encontros um pouco mais clandestinos num longínquo bosque de castanheiros. Meu pai não voltou a insistir e Sartre ficou ainda uma semana no Boule d’Or. Depois disso, escrevemo-nos diariamente.
Quando tornei a encontrá-lo, em outubro, tinha liquidado meu passado; 3 empenhei-me por inteira em nosso caso. Sartre devia partir em breve para o serviço militar; entrementes estava de férias. Residia na rua Saint-Jacques, com seus avós Schweitzer, e encontrávamo-nos pela manhã no jardim Luxemburgo cinzento e dourado, sob o olhar branco das rainhas de pedra; só nos largávamos tarde da noite. Andávamos por Paris e continuávamos a conversar, considerando o pé em que estávamos em relação a nós mesmos, nossa ligação, nossa vida e nossos futuros livros. Hoje, o que me parece mais importante nessas conversas são menos as coisas que dizíamos do que as que encarávamos como resolvidas; não estavam, enganávamo-nos em relação a quase tudo. Para nos definir, cumpre examinar esses erros, pois exprimiam uma realidade: a de nossa situação.
Já o disse: Sartre vivia para escrever; tinha por missão testemunhar todas as coisas e retomá-las por sua conta e à luz da necessidade; a mim, era prescrito emprestar minha consciência ao múltiplo esplendor da vida, e eu devia escrever para arrancá-la do tempo e do nada. Essas missões impunham-se a nós com uma evidência que nos garantia sua realização; sem nos formular, aderíamos ao otimismo kantiano: deves, logo podes. E efetivamente, como a vontade duvidaria de si mesma no momento em que se decide e se afirma? É uma só coisa então querer e acreditar. Por isso mesmo confiávamos no mundo e em nós mesmos. Éramos contra a sociedade em sua forma atual; mas esse antagonismo nada tinha de melancólico: implicava um robusto otimismo. O homem devia ser recriado e essa invenção seria em parte obra nossa. Não pensávamos em contribuir para isso senão com livros; os negócios públicos nos entediavam muitíssimo, mas esperávamos que os acontecimentos se desenrolassem segundo nossos desejos, sem que tivéssemos que nos meter neles. A esse respeito, no outono de 1929, partilhávamos a euforia da esquerda francesa. A paz parecia definitivamente assegurada. A expansão do Partido Nazista na Alemanha representava apenas um epifenômeno sem gravidade. O colonialismo seria liquidado em pouco tempo: a campanha iniciada por Gandhi na Índia e a agitação comunista na Indochina nos garantiam isso. A crise de virulência excepcional que sacudia o mundo capitalista pressagiava que essa sociedade não aguentaria muito tempo. Já nos afigurava vivermos na idade de ouro que constituía a nossos olhos a verdade recôndita da História, e que ela se limitaria a desvendar.
Ignorávamos em todos os domínios o peso da realidade. Vangloriávamo-nos de uma liberdade radical. Acreditamos durante tanto tempo e com tanta tenacidade nessa palavra que foi preciso ver de perto o que nela púnhamos.
Cobria uma experiência real. Em toda atividade descobre-se uma liberdade, particularmente na atividade intelectual, porque dá pouca margem a repetição. Tínhamos trabalhado muito; sem cessar, fora preciso compreender e inventar novamente. Tínhamos uma intuição prática da liberdade, irrecusável; nosso erro foi não a encerrar dentro de seus justos limites; ficamos presos à imagem da pomba de Kant: o ar que lhe resiste, longe de travar, suporta seu voo. O dado apareceu-nos como a matéria de nossos esforços, não como seu condicionamento; pensávamos não depender de nada. Assim como nossa cegueira política, esse orgulho espiritualista explica-se antes de tudo pela violência de nossos projetos. Escrever, criar: não ousaríamos, na verdade, arriscar-nos a essa aventura se não tivéssemos absoluta certeza de nós mesmos, de nossos fins e de nossos meios. Nossa audácia era inseparável das ilusões que a sustentavam, e as circunstâncias as haviam favorecido juntas. Nenhum obstáculo exterior jamais nos forçara a ir de encontro a nós mesmos; queríamos conhecer e exprimir-nos; estávamos empenhados até o pescoço nessa tarefa. Nossa existência satisfazia tão bem nossos desejos que nos parecia que a tínhamos escolhido; daí acharmos que sempre se submeteria a nossos desígnios. A sorte que nos servira mascarava a adversidade do mundo. Por outro lado, interiormente, não sentíamos empecilhos. Eu mantinha boas relações com meus pais, mas eles tinham perdido todo domínio sobre mim; Sartre nunca conhecera o pai; nem sua mãe nem seus avós tinham encarnado a lei a seus olhos. Em certo sentido, éramos ambos sem família e tínhamos erigido essa situação em princípio. Havíamos sido encorajados pelo racionalismo cartesiano que Alain nos transmitira e que tínhamos abraçado justamente porque nos convinha. Nenhum escrúpulo, nenhum respeito e nenhuma aderência afetiva nos impediam de tomarmos nossas resoluções à luz da razão e de nossos desejos; não percebíamos em nós nada de opaco ou turvo; pensávamos ser pura consciência e pura vontade. Essa convicção era fortalecida pelo arrebatamento com o qual apostávamos no futuro; não estávamos alienados a nenhum interesse definido, porquanto o presente e o passado deviam ser sempre ultrapassados. Não hesitávamos em contestar todas as coisas e nós mesmos sempre que a ocasião o solicitava; criticávamo-nos e condenávamo-nos com desenvoltura, uma vez que toda mudança nos afigurava um progresso. Como nossa ignorância dissimulava a maior parte dos problemas que nos deveriam ter inquietado, contentávamo-nos com essas revisões e imaginávamo-nos intrépidos.
Simone de Beauvoir, in A força da idade

Sangue novo na MPB: Tibério Azul - Bandeira

Distância

Um cavaleiro e um cachorro
viajam para a paisagem.
Conseguiram que esse morro
não lhes barrasse a passagem.
Conseguiram um riacho
com seus goles, com sua margem.
Conseguiram boa sede.
Constataram:
cai a tarde.

Sobre a tarde, cai a noite,
sobre a noite a madrugada.
Imagino o cavaleiro
esta orvalhada e estrelada.
O pensar do cavaleiro
talvez o amar, ou nem nada.
Imagino o cachorrinho
imaginário na estrada.
Caía a tarde.

Para a tarde o cavaleiro
ia, conforme avistado.
Após, também o cachorro.
Todos — iam, de bom grado,
à tarde do cavaleiro
do cachorro, do outro lado
que na tarde se perderam,
no morro, no ar, no contado.
Caiu a tarde.
Guimarães Rosa

Nossa amiga

Não é bastante alta para chegar ao botão da campainha.
O peixeiro presta-lhe esse serviço, tocando. Alguém abre.
Foi a garota que pediu para chamar...
Quando não é algum transeunte austero, senador ou ministro do Supremo, que atende à sua requisição.
Com pouco, a solução já não lhe satisfaz. Descobre na porta, a seu alcance, a abertura forrada de metal e coberta por uma tampa móvel, de matéria idêntica: por ali entram as cartas. Os dedos sacodem a tampa, desencadeando o necessário e aflitivo rumor. Antes de abrir, perguntam de dentro:
Quem está aí? É de paz ou de guerra?
De fora respondem:
É Luci Machado da Silva. Abre que eu quero entrar.
Ante a intimação peremptória, franqueia-se o recinto. Entra uma coisinha morena, despenteada, às vezes descalça, às vezes comendo pão com cocada, mas sempre séria, ar extremamente maduro das meninas de três anos.
À força de entrar, sair, tornar a entrar minutos depois, tornar a sair, lanchar, dormir na primeira poltrona, praticar pequenos atos domésticos, dissolveu a noção de residência, se é que não a retificou para os dicionários do futuro.
Qual é a sua casa?
Esta.
E a outra de onde você veio?
Também.
Quantas casas você tem?
Esta e aquela.
De qual você gosta mais?
Que é que você vai me dar?
Nada.
Gosto da outra.
Tem aqui esta pessegada, esta bananinha...
Gosto desta casa! Gosto de você!
Não é gulodice nem interesse mesquinho. Será antes prazer de sentir-se cortejada, mimada. Esquece a merenda para ficar na sala, de mão na boca, olhando os pés estendidos, enquanto alguém lhe acarinha os cabelos.
Nem tudo são flores, no espaço entre as duas residências. Há Catarina e Pepino.
Catarina foi inventada à pressa, para frustrar certa depredação iminente. Os bichos de cristal na mesinha da sala de estar tentavam a mão viageira. Pressentia-se o momento em que as formas alongadas e frágeis se desfariam. Na parede, esquecida, preta, pousara uma bruxa.
Não mexa nos bichinhos.
Mexia.
Não mexa, já disse... Em vão.
Você está vendo aquela bruxa ali? É Catarina.
Que Catarina?
Uma menina de sua idade, igualzinha a você, talvez até mais bonita. Muito mexedeira, mas tanto, tanto! Um dia foi brincar com o cachorrinho de vidro, a mãe não queria que ela brincasse. Catarina teimou, mexeu e quebrou o cachorrinho. Então, de castigo, Catarina virou aquela bruxinha preta, horrorosa. Para o resto da vida.
A mão imobiliza-se. A bruxa está presa tanto na parede como nos olhos fixos, grandes, pensativos. Entre os mitos do mundo (entre os seres reais?), existe mais um, alado, crepuscular, rebelde e decaído.
Pepino tem existência mais positiva. Circula na rua — a rua é o espaço entre as duas quadras, repleto de surpresas — geralmente à tarde. Vem bêbedo, curvado, expondo em frases incoerentes seus problemas íntimos. Pegador de crianças.
Vou embora para minha casa. Você vai me levar.
Mas você mora tão pertinho...
E Pepino?
Pepino não pega ninguém. Ele é camarada.
Pega, sim. Eu sei.
Pois eu vou dar uma festa para as crianças desta rua e convido Pepino. Você vai ver se ele pega.
Eu não vou na festa.
Você é quem perde. Vem Elsinha, Nesinha, Heloísa, Alice, Maria Helena, Lourdes, Bárbara, Édison, Careca, João e Adão. Pepino vai dançar para as crianças. Você, como é uma boba, não toma parte.
Até logo!
Sai voando, a porta fecha-se com estrondo. Da varanda, ainda se vê o pequeno vulto desgrenhado.
Espere aí, você não tem medo do Pepino?
Não. Estou zangada com você.
Com a zanga, desaparece o temor. Seria realmente temor? Gosta de ser acompanhada, para dizer à mãe, quando chega em casa:
Espia quem me trouxe.
Volta meia hora depois, penteada, calçada, vestido limpo.
Espia minha roupa nova. Meu sapato branco.
Mas que beleza! Onde você vai?
Vou na festa.
Para tomar banho e trocar de vestido, é necessário que se anuncie sempre uma festa, jamais localizada ou realizada, mas que opera interiormente sua fascinação. Não há pressa em ir para ela. A merenda, a conversa grave com pessoas grandes, estranhamente preferidas a quaisquer outras, o brinquedo personalíssimo com o primeiro encontro do dia — um carretel, a galinha que salta do carrinho de feira — fazem esquecer a festa, se não a constituem. E resta saber se o enganado não será o adulto, que sugere terrores ou recompensas fantasiosas. Nas campinas da imaginação, esse galope de formas — será a verdade?
Senta-se no corredor, e com uns panos velhos, lápis vermelho, pedrinha, qualquer elemento poetizável, representa para si só a imemorial história das mães.
Comadre, seu filhinho como vai?
Tá bom, comadre, e o seu?
Tá com dedo machucado e dodói na barriga. Vai tomar injeção.
Então vou dar no meu também.
Perguntas e respostas, recolhidas em conversas de adulto, saem da mesma boca inexperiente. O objeto que serve de filho é embalado com seriedade. A doença existe, existem os sustos maternais. Mas tudo se desfaz, se acaso um intruso vem surpreender a criação, tirada em partes iguais da vida e do sonho, e que os prolonga. Assim pudesse a mãe antiga tornar invisível seu filho, ante os soldados de Herodes.
Carlos Drummond de Andrade, in Contos de aprendiz