segunda-feira, 29 de maio de 2017

Memórias da infância

Pena que a vida seja tão curta. Há tantas coisas bonitas para serem vistas! Acho que a noite estava chegando quando Robert Frost escreveu... Ah! Mas antes de ler... Já disse que os poetas deveriam aprender dos compositores. Os compositores indicam, no início da partitura, o andamento e o sentimento daquela música. Poesia é música. Portanto, os poetas deveriam fazer o que fazem os compositores. Frost não fez. Eu farei. Assim, coloco no início do seu poema: lentamente, nostalgicamente... Agora podemos ler.

Os bosques são belos, sombrios, fundos.
Mas há muitas milhas a andar e muitas promessas a guardar
antes de se poder dormir,
sim, antes de se poder dormir.

Uma aluna minha chorou ao ouvir esses versos pela primeira vez. A dor se encontra nesta palavrinha mas. Sim, os bosques são belos, cheios de mistérios... Convidam. O poeta ouve a sua voz. Mas não aceita o convite. E explica: “Não posso. É crepúsculo. A noite se aproxima. Há urgências que me chamam: milhas a andar, promessas a guardar, antes de se poder dormir”. Antes de se poder dormir? Aquela cena será uma metáfora da vida que chega ao fim, como o dia? E o dormir – será a morte? É preciso caminhar rápido. O tempo é breve. Não há tempo para atender a todos os convites da beleza à beira do caminho. A vida é breve. Que pena... Ravel se lamentava: “Há tantas músicas a serem escritas...” Eu acrescento: Há tantos poemas a serem lidos!
Os desencontros da vida fizeram com que eu só descobrisse a poesia ao entardecer. Quantos poemas eu não li! Mas agora o tempo não dá. Sinto inveja de Murilo Mendes. Ao lê-lo, tenho vislumbres dos poemas que ele leu e eu nunca lerei, dos quadros que ele viu e eu nunca verei. Sinto a mesma coisa lendo Bachelard. Homens afortunados, encontraram-se com a poesia quando eram ainda crianças! Que lamentável falha em nosso sistema educativo, em que o prazer da poesia não se encontre entre as exigências para se ingressar na universidade! E, no entanto, Norbert Wiener afirmou que existe mais comunicação num poema de Keats que num relatório científico!
Releio o capítulo “Os devaneios voltados para a infância” do maravilhoso livro A poética do devaneio, de Bachelard. Ah! Como os terapeutas e os educadores ficariam mais sábios se lessem esse texto maravilhoso. Compreenderiam melhor as crianças se se entregassem aos seus próprios devaneios de criança! São tantos os poetas que Bachelard cita e que desconheço! Bem que gostaria de ter tempo para conhecê-los. Mas não posso. Já anoitece. Eu nunca havia ouvido este nome Henri Bosco. Mas agora, depois de ler dois pequenos fragmentos, eu já o amo. Porque ele põe palavras nos meus sentimentos. Falando sobre sua infância, ele diz: “Eu retinha com uma memória imaginária toda uma infância que ainda não conhecia e que, no entanto, reconhecia!” Para se conhecer a alma de uma criança, é preciso abandonar a memória biográfica e entrar na imaginação, aquilo que nunca foi. Como é isso, não conhecer e, no entanto, re-conhecer? Os poetas sabem que é assim. Na mais bela declaração de amor jamais escrita, Fernando Pessoa diz:

Quando te vi, amei-te já muito antes.
Tornei a achar-te quando te encontrei.

Sim, meu amor por ti já estava em mim, antes que te conhecesse. Então, eu te conhecia sem o saber! Agora, que te encontrei, re-conheci o rosto que eu já amava sem saber. Tu, minha amada, já existias em mim desde antes do começo dos mundos!”
A amada morava no amante numa memória anterior à história, aquela mesma memória na qual santo Agostinho encontrou o seu Deus. Assim são as memórias da infância. Elas são anteriores à infância real. São fantasias felizes.
Assim Bosco podia escrever: “No meio de vastas extensões despojadas pelo esquecimento, luzia continuamente essa infância maravilhosa que me parecia ter inventado outrora...” É preciso esquecer os fatos para que as essências apareçam.
Ao reler o que escrevi, tive medo de que não estivesse claro. Mas talvez até fosse bom que não estivesse claro. A clareza nos mantém ligados ao texto, o que inibe a fantasia. O pensamento, como os olhos, se esforça mais em meio às neblinas... Mas ainda sou vítima dos antigos hábitos de professor. Desejo retirar as neblinas... Assim, vou tentar explicar.
Já falei em outros lugares sobre Angelus Silesius, o místico que escrevia em forma poética. Um dos seus poemas diz assim: “Temos dois olhos. Com um nós vemos as coisas do tempo, efêmeras, que desaparecem. Com o outro nós vemos as coisas da alma, eternas, que permanecem”. Dois olhos, cada um deles tem uma memória diferente. Na memória do primeiro olho estão guardadas, numa infinidade de arquivos, as informações sobre o mundo de fora, coisas que realmente aconteceram. Basta que eu diga o nome da informação desejada para que o arquivo se abra e eu me lembre. É assim que funcionam os computadores. Nós, em muitos aspectos, nos parecemos com eles. Mas as memórias do segundo olho são diferentes. E isso porque elas moram na alma. E a alma é uma artista. Artistas não aceitam a realidade. Como disse o filósofo Ernst Bloch: “O que é não pode ser verdade.” Ou, no dizer do poeta Manoel de Barros: “Deus dá a forma: o artista desforma...” Imagine um ceramista. Trabalha com a argila. Argila é coisa sem sentido, sem beleza. Aí ele, artista, toma a argila e com suas mãos lhe dá a forma de beleza que sua fantasia pede. Pois é isso que faz a alma: ela toma as memórias do primeiro olho como se fossem argila e lhes dá a forma que o coração pede. Por oposição às memórias do primeiro olho, que são exteriores a nós, as memórias do segundo olho são partes de nós mesmos. Quando as recordamos, o corpo se altera: ele ri, chora, brinca, sente saudades, medo, quer voltar – às vezes para pegar no colo aquela criança amedrontada. E nem sabemos se foi daquele jeito mesmo ou se o recordado é uma fantasia, criada pela alma. Mas, para a alma, isso não importa.
Meu amigo Jether Ramalho me contou uma dessas memórias. Ele, menino, há mais de setenta anos. Com seus pais e irmãos. Estão no convés de um navio. No cais, os amigos e irmãos da igreja acenam adeus e cantam: “Deus vos guarde pelo seu poder...” Estão deixando o Brasil para se mudar para Portugal. O navio apita seu apito rouco e triste. Ouve-se mais forte o barulho das máquinas. O navio despega-se do cais. Abre-se o espaço entre o cais e o navio, o espaço da ausência. “Todo cais é uma saudade de pedra!” O navio vai se distanciando. As pessoas com seus lenços brancos vão ficando pequenas. E as vozes, aos poucos, vão se tornando inaudíveis...
Essa cena está fora do tempo, paralisada. Não tem antecedentes. Não tem consequentes. Ela aparece pura e eterna na memória, como se fosse um belo quadro. Ou um sonho que se repete. E basta que ela seja lembrada para que a alma deseje voltar. Não é parte de um passado. É sempre presente.
Essas reflexões me vieram no meu esforço de recuperar o meu tempo perdido. Quero revisitar o meu passado para contar... Mas percebi que a minha memória, nesse esforço, não me contava uma história, uma série ordenada de eventos acontecidos que poderiam até se transformar numa biografia. Pois não é isso que é uma biografia? Um relato de coisas acontecidas? Ah! Como o Riobaldo era sábio. “Contar é muito dificultoso”, ele dizia.

Não pelos anos que já se passaram. Mas pela astúcia que têm certas coisas passadas de fazer balancê, de se remexerem dos lugares. A lembrança da vida da gente se guarda em trechos diversos; uns com os outros acho que nem não se misturam. Contar seguido, alinhavado, só mesmo sendo coisas de rasa importância. Tem horas antigas que ficaram muito mais perto da gente do que outras de recente data. Toda saudade é uma espécie de velhice.

Talvez, então, a melhor coisa seria contar a infância não como um filme em que a vida acontece no tempo, uma coisa depois da outra, na ordem certa, sendo essa conexão que lhe dá sentido, princípio, meio e fim, mas como um álbum de retratos, cada um completo em si mesmo, cada um contendo o sentido inteiro. Talvez seja esse o jeito de se escrever sobre a alma em cuja memória se encontram as coisas eternas, que permanecem…
Rubem Alves, in Se eu pudesse viver minha vida novamente

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