sexta-feira, 31 de março de 2017

A armadilha da complexidade (trecho)

No início de 2010, o arquiteto americano Bryan Berg terminou o que ainda é considerado o maior castelo de cartas do mundo. Com mais de quatro mil baralhos, Berg construiu uma imponente réplica do Venetian Macao-Resort-Hotel, na China, com três metros de altura e nove de largura. Ao observar aquela incrível estrutura, vi ali uma espécie de metáfora do mundo altamente complexo e interligado em que vivemos hoje. Um camundongo correndo ou o espirro inoportuno de um visitante poderiam, em um segundo, botar abaixo o castelo que o americano levou 44 dias para erguer. O mesmo vale para as fragilíssimas infraestruturas das quais dependemos em nossa vida diária.
Todo o mundo industrializado está à mercê de uma injeção contínua de tecnologia cada vez mais avançada. Além disso, os sistemas que sustentam nosso estilo de vida estão completamente entrelaçados: a internet depende da rede elétrica, que por sua vez precisa do abastecimento de energia do petróleo, carvão mineral e fissão nuclear, que também depende de tecnologias de produção que, da mesma forma, exigem eletricidade. E assim nos encontramos — um sistema apoiado sobre outro que também se equilibra sobre outro, tudo interligado. A sociedade moderna é exatamente como o “cassino de Berg”, em que cada nova carta se aloja sobre as outras. Um contexto bastante propício para que aquele ratinho em disparada esbarre numa carta de baixo e derrube a estrutura inteira.
Evidentemente, a fragilidade da construção é o que valoriza um castelo de cartas. Isso é ótimo — como passatempo. Mas quem deseja basear todo o seu estilo de vida num castelo de cartas? Imagine Nova York, Paris ou Moscou sem energia elétrica por um período indeterminado. Ou, pensando no longo prazo, o que aconteceria se não surgissem novas tecnologias durante uma década? O que seria do nosso padrão de vida?
Boa pergunta. O que acontece com nosso padrão de vida quando a sedutora música da tecnologia silencia? Uma pergunta ainda mais instigante: o que poderia interromper a música? Como todas as perguntas fundamentais, essa também admite respostas multifacetadas, mas todas se baseiam num motivo fundamental para explicar como e por que a tecnologia pode parar. Nas páginas deste livro, afirmo que a música para, na verdade, porque o agente de mudança, o evento X, puxa o cabo da tomada. E esses “eventos extremos”, surpreendentes e impactantes, que desestruturam sistemas, decorrem, eles próprios, da complexidade crescente das infraestruturas tecnológicas e de outras criações humanas, as mesmas infraestruturas que sustentam o que poderia ser chamado, num eufemismo, de vida “normal”. Parte da questão aqui é demonstrar de forma indiscutível que essa suposta normalidade foi conquistada ao elevado custo de uma grande vulnerabilidade e da possibilidade de um colapso nas mãos de uma gama cada vez mais ampla de eventos X. Como se não bastasse, todos esses possíveis agentes de mudança têm a mesma raiz: um conhecimento limitadíssimo dos assombrosos e ilógicos meandros dos sistemas complexos.
Passei a maior parte da minha vida profissional explorando a complexidade em organizações como a RAND Corporation, o Santa Fe Institute e o International Institute for Applied Systems Analysis (IIASA). No ano de 1970, época em que obtive meu Ph.D. em matemática e comecei a pesquisar sistemas complexos, o mundo era um lugar muito diferente. Os telefones possuíam discos giratórios, os computadores custavam milhões de dólares, metade do mundo estava fechada para o livre-comércio e para viagens, e qualquer um, mesmo sem um diploma em engenharia elétrica, conseguia consertar seu velho Chevrolet ou Volkswagen. Aliás, ninguém precisa estudar teoria de sistemas para ver que nossas vidas e nossas sociedades nunca foram tão dependentes de tecnologias cada vez mais obscuras. Grande parte dessa dependência se deve à crescente complexidade da própria tecnologia. A cada ano que passa, a complexidade de nossos dispositivos e infraestruturas, desde automóveis até as finanças, redes elétricas e cadeias de abastecimento alimentar, cresce de maneira exponencial. Uma parcela desse aumento tem como objetivo garantir um nível de solidez e proteção contra falhas de sistemas, que em geral funciona apenas para abalos relativamente inexpressivos e previsíveis. Mas a maior parte não se justifica. Quem de fato precisa de uma máquina de café expresso com um microprocessador? Alguém precisa escolher entre dezessete variedades de ração para cachorro em promoção no supermercado? Será que é necessário fabricar carros que dependam de grossos manuais do proprietário para explicar como funcionam os bancos elétricos, o sistema de GPS e outras parafernálias incluídas?
Esses pequenos exemplos cotidianos de aumento de complexidade costumam ser vendidos como histórias de sucesso tecnológico. Mas serão mesmo? Seria possível alegar, com muita propriedade, que o caso aqui é de fracasso tecnológico, sucesso nenhum, se contabilizarmos o tempo que gastamos analisando os ingredientes das rações de cachorro disponíveis antes de fazermos uma escolha que é mais ilusória do que real ou se levarmos em consideração a frustração que sentimos ao folhear o manual do proprietário em busca da página que explica como acertar a hora no relógio do nosso carro novo. Mas adicionais indesejados/desnecessários num carro novo ou diferenças quase imperceptíveis no supermercado são aborrecimentos pequenos, até mesmo ridículos. (In)felizmente, não precisamos ir muito longe para encontrar casos de excesso de complexidade que realmente preocupam. Basta ler a primeira página de qualquer jornal diário. Encontraremos manchetes sobre o mais recente capítulo da contínua saga do instável sistema financeiro global, o fracasso dos mecanismos de segurança em usinas nucleares e/ou a inviabilidade das negociações sobre tarifas e comércio destinadas à reestruturação do processo de globalização. Essas histórias já seriam suficientes para provocar arrepios em qualquer ser humano. Ainda mais assustador, entretanto, é o fato de que aquilo que se divulga publicamente ainda é pouco em comparação ao que de fato ocorre, como as páginas deste livro comprovarão.
A ciência da complexidade como disciplina reconhecida existe há pelo menos duas décadas. Portanto, qual a urgência de se chamar a atenção do público para a mensagem sobre complexidade e eventos extremos neste momento? A razão é muito simples: nunca antes na história da humanidade os seres humanos estiveram tão vulneráveis a um gigantesco, quase inacreditável, downsizing em seu modo de viver quanto hoje em dia. As infraestruturas necessárias para manter um estilo de vida pós-industrial — energia, água, comida, comunicação, transporte, saúde, segurança, finanças — são tão interligadas que, se um sistema espirrar, os outros pegam pneumonia na mesma hora. Este livro delineia as dimensões do(s) problema(s) que enfrentamos na atualidade, suas origens e o que podemos fazer para reduzir o risco de uma pane total do sistema, levando-se em consideração que, neste caso, a própria civilização humana é “o sistema”.
John Casti, in O colapso de tudo

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