segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Em trânsito

       Você me acha ciumenta?”
Não.”
Nada?”
Nem um pouco.”
Não combinamos que sempre falaremos a verdade?”
Combinamos?”
Não tenho certeza. Mas não seria bom pro casamento?”
Uma mentirinha inocente não faz mal a ninguém.”
Então me acha.”
O quê?”
Um pouco.”
Ciumenta? Normal.”
Normal quanto?”
Como assim? Numa escala? De zero a dez?”
Muito ou pouco?”
Por que isso agora? Aconteceu alguma coisa de que não estou sabendo?”
Nada.”
Tinha alguém no bar me olhando, alguém disse alguma coisa?”
Por quê? Tinha alguém no bar te olhando?”
Não reparei.”
Alguém disse alguma coisa?”
Disse?”
A velha tática de responder perguntando.”
Contra a velha tática de jogar verde pra colher maduro.”
Você quer mudar de assunto e falar de agricultura agora?”
Começou este papo por quê…?”
Por quê…?”
Boa pergunta. Me sinto um criminoso. Por quê?”
Entram no carro. Ela dá a partida. Ele, com a carteira de motorista suspensa, vai como passageiro. Encaixam o cinto. Ela liga o pisca e, antes de sair da vaga, retoma o que ele considerava superado.
Para saber se você me acha ciumenta.”
Ciúme é que nem barata. Não cura nada, não alimenta.”
Não faz rodeios com metáforas.”
Vamos tentar manter nossa relação longe dessa praga.”
Tá vendo, então acha!”
O quê?”
Ciumenta!”
Acabou de passar por um farol vermelho.”
Sou ciumenta, que merda!”
Relaxa.”
Estou desabafando!”
Cuidado com a moto.”
Eu sei o que estou fazendo.”
Por que a irritação agora?”
Porque eu sei que sou muito ciumenta.”
É nada.”
Sou! E é uma droga isso!” E grita: “Sai da frente!”
Amor, era faixa de pedestres.”
Sempre atravessam quando quero passar?!”
É normal ter ciúme.”
Vou ficar louca.”
Vai?”
Vou xeretar seu e-mail, seu celular, sua carteira, contas bancárias, vou mandar te seguir, grampear seu telefone. E eu não quero isso. Então, melhor me dizer agora toda a verdade.”
Que verdade?”
Ela estaciona o carro na primeira vaga que encontra e o desliga. Acende um cigarro. Traga como se participasse de uma gincana: o vencedor é quem acaba o cigarro primeiro. Ficam mudos por um tempo. Ele espera, até dizer:
Não é perigoso ficar parado aqui a essa hora?”
A Joana.”
O que tem a Joana?”
Tenho ciúme dela. Folgada…”
Da Joana?! Mas… Já te disse milhões de vezes, fomos colegas na faculdade, é minha amiga, minha única amiga daquela época. Você acha que não é possível haver amizade entre um homem e uma mulher? Você tem amigos homens. Vários. Ela é minha única amiga mulher.”
Ela faz questão de me esnobar, contar coisas suas que não conheço, rir de piadas que só vocês dois entendem.”
Lógico! Eu conheço ela há muito mais tempo que conheço você.”
Isso que me irrita. Ela sabe de você mais do que eu.”
Claro.”
Por que ela sempre me provoca?”
Sei lá.”
Vai ver não gosta de mim.”
Vai ver não gosta de você.”
Tá vendo?!”
Ela joga o cigarro com raiva pela janela e liga o carro, o pisca, sai e acelera. Passa por outro farol vermelho e quase atropela outro motoboy.
Por que não gosta de mim, eu não sou fofa?”
Cuidado, o ônibus!”
Desisti de ser legal com ela.”
Isso mesmo, é uma idiota, sempre te provocando. Ela faz isso sempre.”
Faz?”
É, adora fingir que conhece segredos da minha vida que só ela sabe.”
Você também reparou?”
Claro. Fora que usa roupas apertadas, fica ridícula com aquela banha saindo pra fora da calça…”
Ridícula!”
Ela diminui a velocidade.
E o hálito de cigarro? Ridícula! Isso, amor, ali tem radar.”
Eu sei.”
Pode ir até um pouco mais rápido.”
Não é quarenta?”
Acho que é sessenta.”
Na dúvida, melhor ir a quarenta.”
Beleza.”
Ambos checam a velocidade em que passam, marcada no totem: 30 km/h.
Ah, ela é divertida.”
Joana?! Que nada. Vou cortar as relações totalmente. Cansei de ver ela te esnobando.”
Tadinha. É o jeito dela.”
É?”
Insegurança.”
Mas você não fica chateada? Não quero que nada nos atrapalhe.”
Normal ter ciuminho, vai dizer que você não tem.”
Evito.”
Ciúme não se evita. Só os mortos não sentem. Hoje mesmo. No bar. Ele me piscou.”
Mas aquele era o Edmundo!”
E daí? Não conta? Ele bem que ficou me olhando.”
Olhando pra lente da câmera. Eu que pedi para você tirar uma foto minha com ele. Vou ter ciúme?”
E o sorrisinho?”
Você queria que ele fizesse uma cara feia? Logo o Edmundo… O Animal?!”
Bem. Ele é gato. E aquelas pernas…”
Deu tempo para você olhar pras pernas dele?!”
Ele estava de bermudas. Todas estavam olhando pras pernas dele. E pra bunda.”
Passa este carro logo.”
Nenhum ciuminho? Olha a foto dele aí no celular.”
O cara jogou em todos os times, nem sou tão fã.”
Por que então você me pediu para tirar a foto?”
Inércia.”
Olha a foto:
É, um sorriso diferente…”
Não disse?”
Passa este carro! Sai da frente, seu cego, desgraçado, sai de casa por quê?!”
Ele me xavecou de leve.”
O cara daquele caminhão me xingou?! Emparelha!”
Repara na foto.”
Passa ele e para o carro! O que foi, palhaço?! Vai encarar?!”
É, amor, você tem razão. Olhando bem… Foi um sorriso burocrático.”
Ah, fugiu, né? Desgraçado!”
Piscou de agradecimento. Vou apagar esta foto.”
Do que a gente tava falando?”
Ih. A Joana mandou uma mensagem. Que fofa…”
O que ela quer?”
Perguntou se você ficou com ciúme do Edmundo.”
Que folgada…”
Marcelo Rubens Paiva, in As verdades que ela não diz

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