quarta-feira, 30 de novembro de 2016

Numa certa idade

Desta lenta gestação, vão nascer inesperados frutos. Não terminou a aventura da qual participei apaixonadamente: a dúvida, os reveses, o aborrecimento, marcar passo, em seguida a luz entrevista, uma esperança, uma hipótese confirmada. Depois de semanas e de meses de ansiosa paciência, a embriaguez do êxito. Não compreendia bem os trabalhos de André mas minha confiança cabeçuda fortalecia a sua. Ela permanece intata. Mas por que não posso mais transmiti-la? Eu me recuso a crer que não verei jamais brilhar em seus olhos a alegria febril da descoberta.
Disse:
Nada prova que você não terá uma segunda inspiração.
Não. Em minha idade temos hábitos que freiam a invenção. Cada ano que passa fico mais ignorante.
Tornaremos a tocar no assunto daqui a dez anos. Aos setenta anos, talvez, você fará a sua maior descoberta.
Isso é bem o seu otimismo! Garanto-lhe que não.
É bem o seu pessimismo!
Rimos. Entretanto, não há do que rir. O derrotismo de André não tem fundamento, desta feita ele carece de rigor. Sim, Freud escreveu em uma de suas cartas que numa certa idade não se inventa mais nada e isso é desolador. Mas ele era, então, muito mais velho que André. Não importa. Injustificada embora, essa melancolia não me entristece menos. Se André se entrega é que, de um modo geral, ele está em crise. Surpreendo-me, mas o fato é que ele não se resigna a varar os sessenta anos. A mim, mil coisas me divertem ainda, a ele não. Antigamente, tudo o interessava, agora é um problema levá-lo a ver um filme, a uma exposição, à casa de amigos.
Que pena você não gostar mais de passear — disse. — Os dias andam tão bonitos! Pensava há pouquinho que gostaria muito de voltar a Milly e às florestas de Fontainebleau. — Você é espantosa — disse-me sorrindo.
Conhece a Europa inteira e deseja rever os arrabaldes de Paris!
Por que não? A colegial de Champeaux não é menos bela porque eu subi à Acrópole.
Pois seja. Assim que o laboratório estiver fechado, em quatro ou cinco dias, eu lhe prometo uma longa vagabundagem de carro.
Teremos tempo de fazer mais de uma pois que ficaremos em Paris até o início de agosto. Mas terá ele vontade? Perguntei:
Amanhã é domingo. Você estará livre?
Não, infelizmente! Você bem sabe da existência desse encontro com a imprensa sobre o apartheid. Eles me trouxeram uma porção de documentos que ainda não examinei.
Prisioneiros políticos espanhóis, detidos portugueses, iranianos perseguidos, rebeldes congoleses, guerrilheiros venezuelanos, peruanos, colombianos, ele está sempre pronto a ajudá-los na medida de suas forças. Reuniões, manifestos, meetings, tratados, delegações, nada ele recusa.
Você se dá demais!
Por que demais? Que outra coisa fazer?
Que fazer, mesmo, quando o mundo se descoloriu? Só resta matar o tempo. Eu também atravessei um mau período há dez anos. Estava aborrecida com meu corpo, Filipe tornara-se adulto. Após o sucesso de meu livro sobre Rousseau sentia-me vazia. Envelhecer me agoniava. Depois, iniciei um estudo sobre Montesquieu, consegui que Filipe passasse nos exames e começasse sua tese. Confiaram-me cursos na Sorbonne que me interessaram mais que meus problemas. Resignei-me a meu corpo. Pareceu-me que ressuscitava. E hoje, se André não tivesse uma consciência tão aguda de sua idade, eu esqueceria a minha.
Ele tornou a sair e eu fiquei bastante tempo no terraço. Vi voltear contra o fundo azul do céu uma grua cor de mínio. Segui com os olhos um inseto negro que fazia no ar um sulco espumoso e gelado. A perpétua juventude do mundo me deixa sem ar. Coisas que eu amei desapareceram. Muitas outras me foram dadas. Ontem à tarde, eu subia o Bulevar Raspail e o céu estava carmesim. Pareceu-me caminhar num planeta estrangeiro onde a relva fosse violeta, a terra azul. As árvores abrigavam o avermelhar de um anúncio a néon. Andersen aos sessenta anos maravilhava-se por atravessar a Suécia em menos de vinte e quatro horas quando em sua juventude a viagem durava uma semana. Conheci deslumbramentos semelhantes: Moscou a três horas e meia de Paris!
Simone de Beauvoir, in A mulher desiludida

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