segunda-feira, 31 de outubro de 2016

Haicais


Séculos antes da invenção das máquinas fotográficas, os japoneses já eram mestres na arte de fotografar. Fotografavam sem máquinas. Para isso usavam palavras. Suas maravilhosas miniaturas fotográficas feitas com palavras têm o nome de haicais. Quem lê um haicai vê. São tão pequenos – mas pesam tanto! Leminski, valendo-se de uma sugestão de Jorge Luis Borges, descreve um haicai como um objeto poético mínimo de peso intolerável. Não tente entender. Você entende um pôr do sol? Um pássaro em voo? Um sorriso da pessoa amada? Não são para ser entendidos. São para ser vistos. O prazer do que se vê está no ato de ver e não no ato de pensar sobre o visto. Os pensamentos prejudicam a visão. Não foi à toa que Alberto Caeiro afirmou que “pensar é estar doente dos olhos”. Quem lê um haicai fica curado dos olhos por nos obrigarem a não pensar. Veja esse haicai: “Na velha casa que abandonei as cerejeiras florescem”. Acabou. É só isso. Agora, sem ser levado pelo desejo de compreender, entregue-se à visão. Veja a casa velha. A casa que abandonei. Passei por ela. Triste solidão. Os muros estão caídos. O jardim de outrora se transformou num matagal. As paredes estão descascadas. Mas, a despeito desse abandono, as cerejeiras florescem... As cerejeiras são fiéis. Pode-se confiar nelas. Às vezes brinco de fazer haicais, embora não obedeça à técnica. Aqui está um, inspirado pelas cerejeiras. Era o tempo quando se tinha medo de andar pelas ruas de Campinas. A morte estava à espreita nas esquinas. Aí eu vi um ipê florido e o haicai saiu: “Na cidade amedrontada os ipês-amarelos florescem”. Os ipês amarelos estão floridos de novo. Voltam sempre, no mesmo tempo, na ordem certa. Em julho florescem os ipês-rosas. Em agosto, os amarelos. Em setembro, os brancos. De todos, os mais desavergonhados são os ipês-amarelos. Minivulcões em erupções de alegria. É bom ver sua copa amarela, sem uma única folha, contra o céu azul. Alguns deles, fui eu que plantei. Mas são poucos os que se assombram e param para vê-los. Acho um ipê-amarelo florido um milagre maior que um cego ver ou um paralítico andar.
Rubem Alves, in Ostra feliz não faz pérola

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