sexta-feira, 30 de setembro de 2016

Palavras quebradas na poética araweté

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Foto: Alice Kolher 

A criação de poemas pode vir de um sujeito inspirado por suas ideias, sensações ou afecções, mas os mundos ameríndios nos mostram a possibilidade de outras fontes de inspiração. Mostram, para começar, que sujeitos são atravessados por relações que ultrapassam a pessoa, que ligam um Eu a diversos Outros. Mostram que essas relações são fontes geradoras de cantos, narrativas e discursos. E mostram, enfim, que o enunciador de um canto dificilmente é o único responsável pela criação de uma nova expressão poética.
Entre os Araweté, com quem trabalho desde 2011, os cantos estão relacionados a diversas figuras de alteridade, onde predominam os inimigos, os deuses e os espíritos. São esses Outros que, ao fim e ao cabo, geram aquilo que é cantado pelos Araweté. Os “cantos de inimigo”, na expressão de Eduardo Viveiros de Castro, são um dos gêneros da poética araweté e têm sua origem nas escaramuças em que os Araweté se envolveram com outros povos indígenas do interflúvio Xingu-Tocantins. São cantos muito difíceis de traduzir, como me diziam Irarũno e Jatumaro Araweté, dois jovens-adultos que trabalharam comigo na transcrição e tradução de cantos. São cantos em que as palavras são decompostas e recompostas para formar novos vocábulos que, na língua araweté, não querem dizer nada. As palavras são quebradas em sílabas e, então, ligadas a sílabas de outras palavras, mas das novas composições verbais não é possível extrair um referente qualquer. Extrair o sentido dessas novas expressões, então, requer realizar um processo inverso de decomposição/recomposição, que busque encontrar as palavras escondidas sob esse véu de transformação. No entanto, se a transcrição desses cantos exige esse processo de decodificação atenta, a criação dos cantos decorre de um evento bem diferente. Se o tradutor precisa ouvir e pensar como grafar os cantos de inimigo, o cantor precisa encontrar um inimigo.
Acesse a matéria completa da Revista Cult aqui.

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