quarta-feira, 27 de julho de 2016

Vida nova

A nossa casa era na Rua da Palha, junto à de D. Clara, pessoa grave que tinha diversos filhos, um gato, marido invisível. Uma parenta dela, A irmão ou sobrinha, dessas criaturas que não pedem, não falam, não desejam, aparecem quando são úteis e logo se somem, fogem aos agradecimentos, familiarizou-se conosco, tomou conta dos arranjos da instalação. Espanou, esfregou, arrumou as cadeiras pretas, os armários, os baús cobertos de sola, enfeitados de brochas. Findos os trabalhos, ausentou-se. Até o nome dela se perdeu. Meu pai, transformado em comerciante, estabeleceu-se no Largo da Feira. Aí, num socavão triste, de que mais tarde me lembrei ao ver subterrâneos em folhetins, passou dias abrindo caixas e fardos, empilhando mercadorias, examinando faturas, calculando, a lápis, em pedaços de papel de embrulho. Esperei debalde vê-lo concluir esse exercício, voltar ao banco do alpendre e à vazante. Aproximava-me dele muitas vezes, com recados. E no caminho largo a princípio me retardava, contemplando as roseiras do jardim, as paredes brilhantes de azulejos, o sobradinho onde havia homens fardados.
Isso durou pouco. Minha mãe descobriu nódoas no chão, raspou o tijolo, apavorou-se ao ter notícia do que elas eram sangue de tuberculoso. Lavou muito as mãos, chorou, desesperou-se, convenceu-se de que as hemoptises velhas iam penetrá-la e matá-la. Fechou o quarto contaminado e resolveu mudar-se.
Algum tempo depois estávamos localizados, negócio e família, numa esquina, perto do Cavalo-Morto. Atrás da loja, de quatro portas, duas em cada frente, havia o armazém de ferragens e o depósito de milho, onde eu e minhas irmãs brincávamos. A um lado, a sala de visitas, as cavernas do casal e das meninas, a despensa e a cozinha. Um corredor separava a habitação do estabelecimento, desembocava na sala de jantar, larga e baixa. Aí bancos ladeavam a mesa grosseira, e uma cama de lona escondia-se num canto, a cama que me ofereceram quando larguei a rede, por causa das almas do outro mundo.
As almas vieram uma noite, quatro ou cinco, estirando-se e acocorando-se à entrada do corredor. Assustei-me, gritei, acordei toda a gente, descrevi as figuras luminosas que se moviam na escuridão, subindo, baixando. Quando subiam, as cabeças delas alcançavam o teto. Fui deitar-me noutro lugar e no dia seguinte obtive uma notoriedade que me envergonhou. Repetiram o fato, acreditaram nele, responsabilizaram-me por minudências de que não me recordava. Podia um ser tão miúdo inventar aquilo? Atordoava-me, queria evitar os exageros, dizer que a minha história não merecia importância, e receava desprestigiar-me. Eu tinha julgado perceber umas luzes — e as luzes tomavam corpo de repente, entravam nas conversas. Senti remorso, desejei reduzir as minhas almas. Assombrara-me à toa. Vinham-me, porém, dúvidas.
Afirmaram, desenvolveram o caso estranho — e por fim admiti a visão. Talvez não me houvesse enganado completamente. Não enxergara as claridades que se alongavam e encurtavam, mas devia ter visto qualquer coisa.
Esqueci pouco a pouco a aventura e apaguei-me, reassumi as proporções ordinárias. Ficou-me, entretanto, um resto de pavor, que se confundiu com os receios domésticos. Arrepios súbitos, cabelos eriçados, tonturas, se alguém me falava. Nas trevas das noites compridas consegui afugentar perigos enrolando-me, deixando apenas o rosto descoberto. Uma ponta de lençol envolvia a testa, rodeava a cara. Sentia-me assim protegido: nenhum fantasma viria ameaçar-me a boca, o nariz e os olhos expostos. Se o pano se soltava, enchia-me de terrores.
Era preciso que as orelhas e o couro cabeludo se escondessem, provavelmente por serem as partes mais sujeitas a acidentes. Talvez os duendes viessem magoá-las.
Vivíamos numa prisão, mal adivinhando o que havia na rua, enevoada longos meses. Conhecíamos o beco: da janela do armazém, trepando em rolos de arame, víamos, em dias de sol, matutos de saco no ombro, cavalos amarrados num poste grosso, transeuntes que se chegavam cautelosos ao muro, espiavam os arredores e se afastavam depois de molhar o tijolo vermelho.
A alguns passos, na outra esquina, uma casa semelhante à nossa. Três meninos, uma senhora magra, nervosa, um homem de pernas finas metidas em calças estreitas demais, pernas que lhe tinham rendido a alcunha. Desajeitado em cima delas, Teotoninho Sabiá piscava os olhos amarelos de ave, sacudia as grandes asas depenadas e bocejava um cacarejo inexpressivo. Observávamos pedaços de vida, namorávamos o oitão da outra gaiola, aberta, e tínhamos inveja imensa dos Sabiás pequenos, desejávamos correr e voar com eles.
Nos dias de inverno o beco se transformava num rego de água suja, onde se desfaziam complicados edifícios e navegavam barquinhos de papel, sob o comando de um garoto enlameado. A garoa crescia. A chuva oblíqua enregelava-nos. Uma cortina oscilante ocultava os móveis, as prateleiras da loja.
Os tecidos criariam mofo, os metais se oxidariam. Fechavam-se as portas e as janelas. As figuras moviam-se na sombra, indeterminadas.
Ia recolher-me à cama da sala de jantar, envolvia-me nas cobertas úmidas.
Enxergava a custo as poças do quintal, as manchas que se alargavam nas paredes, a telha escura, uma quina da prensa de farinha, velha e carunchosa, caída no alpendre. Havia um cheiro acre de lenha verde queimada; a fumaça da cozinha unia-se à poeira de água, engrossava a fuligem que tingia as teias de aranha. Enorme bica de madeira, um rio suspenso, transbordava nas trovoadas, com surdo rumor. Depois amansava, ficava dias e dias atirando pingos no chão, derramando além do copiar um esguicho leve e silencioso, que o vento agitava.
Não se distinguia nenhum ruído fora a cantiga dos sapos do açude da Penha, vozes agudas, graves, lentas, apressadas, e no meio delas o berro do sapo-boi, bicho terrível que morde como cachorro e, se pega um cristão, só o larga quando o sino toca. Foi Rosenda lavadeira quem me explicou isto. Admirável o sino. Como seria o sapo-boi? Pelas informações, possuía natureza igual à natureza humana. Esquisito. Se eu pudesse correr, sair de casa, molhar-me, enlamear-me, deitar barquinhos no enxurro e fabricar edifícios de areia, com o Sabiá novo, certamente não pensaria nessas coisas. Seria uma criatura viva, alegre. Só, encolhido, o jeito que tinha era ocupar-me com o sapo-boi, quase gente, sensível aos sinos. Nunca os sinos me haviam impressionado.
Sapo cururu
Da beira do rio.
Não me bote na água, Maninha:
Cururu tem frio.
Cantiga para embalar crianças. Os cururus do açude choravam com frio, de muitos modos, gritando, soluçando, exigentes ou resignados. Eu também tinha frio e gostava de ouvir os sapos.
Graciliano Ramos, in Infância

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