quarta-feira, 27 de julho de 2016

Agora posso praguejar

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Tom estava silencioso também, com o jeito de quem está arrependido de ter revelado alguma coisa íntima. Apressou os passos e o pregador imitou-o. Já podiam vislumbrar o caminho. Uma cobra deslizou lentamente, vinda do algodoal, à beira da estrada. Tom parou perto dela.
Não é venenosa, vamo deixar ela em paz — falou.
Passaram ao lado da cobra e continuaram o caminho. A Leste, um fraco colorido surgiu e, quase repentinamente, a solitária luz do amanhecer espalhou-se pelo campo. Os algodoeiros reapareceram na sua plena roupagem verde e a terra em seu tom castanho cinzento. As faces dos homens perderam a cor pardacenta. O rosto de Joad parecia escurecer à medida que o dia clareava.
Essa é uma boa hora — disse Joad. — Quando eu era criança, gostava de levantar cedo e andar aqui pelo campos. Que é aquilo ali adiante?
Um comitê de cachorros rodeava uma cadela na estrada, prestando-lhe homenagens. Cinco machos, mestiços de pastor e galgo, cujas raças se misturaram e se confundiram graças à liberdade de que desfrutavam. Cada um deles farejava com delicadeza e depois, de pernas rígidas, andava em direção a um pé de algodão e molhava-o, levantando cerimoniosamente a perna traseira. Depois voltava, para cheirá-lo. Joad e o pregador pararam para observar a cena, e de repente Joad pôs-se a rir.
Puxa, que farra! — disse. Os cães, agora, reuniam-se, os dentes arreganhados. Rosnavam, rígidos, prontos para o combate. Um dos cães finalmente montou na cadela, e com o fato consumando-se, os outros se limitavam a ficar olhando, fixos, línguas pendentes, gotejando. Os dois homens seguiram o caminho.
Puxa! — exclamava Joad. — Que farra formidável! Sabe, eu acho que aquele cachorro que apanhou a cadela é o nosso Flash. Pensei que já tinha morrido. Vem, Flash! — e riu gostosamente. — Tá certo. Se alguém me chamasse nessa hora, também não ia. Isso me faz lembrar de uma coisa que aconteceu com o Willy Feeley, quando ele era um rapazinho ainda. O Willy era muito tímido. Bem, um dia ele pegou uma novilha para o touro dos Graves. Não tinha ninguém na casa dos Graves, só a Elsie, a filha dele, o senhor sabe? E a Elsie não é nada tímida, não tem nem um pouco de vergonha, aquela criatura. Willy ficou ali como um palerma, vermelho como um pimentão e sem coragem para falar. Aí, a Elsie disse: eu sei por que ocê veio pra cá. O touro tá lá atrás do celeiro. Bem, eles pegaram a novilha e deixaram ela perto do touro e sentaram no moirão da cerca pra ficar olhando. Não demorou, o Willy tava ficando daquele jeito. Elsie olhou pra ele e disse como se não fosse nada de mais: Que foi, Willy? O Willy tava que não conseguia ficar quieto. Meu Deus — disse ele —, até eu tô com vontade de fazer isso. E a Elsie disse: então faz, Willy. A novilha é tua.
O pregador riu brandamente.
Sabe, é uma boa coisa a gente não ser mais um pregador. Quando eu ainda era o reverendo Casy, ninguém contava histórias assim na minha presença, ou quando alguém contava, eu não podia rir, não ficava bem. E também não podia praguejar. Agora praguejo quando quiser; isso me faz um bem danado.
John Steinbeck, in As vinhas da ira

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