sábado, 30 de julho de 2016

A engolidora de almas

Em um poema de 1915, a poeta russa Marina Tsvetáieva fala de dois sóis que a atormentam. Eles se espelham, “um – no teu céu (o de deus), outro – no meu peito”. A duplicação do sol define um abismo. Ela se pergunta: “Como esses dois sóis – algum dia terei cura?”. A presença do fogo atravessa toda a poesia de Marina. Não só seus versos: mobiliza sua existência, como constatamos em suas confissões. Reunidas por Tzvetan Todorov em Vivendo sob o fogo (Martins Editora, tradução de Aurora Bernardini), elas conduzem o leitor através do clarão do ser.
Os poetas gelados agarram-se, por vezes, às ideias do francês Paul Valéry. Ideias como esta, colhida em Monsieu Teste: “Considerar suas emoções como tolices, debilidades, inutilidades, imbecilidades, imperfeições – como o enjoo”. Há aí uma confusão entre o sentimentalismo e a afetação e o grande redemoinho das emoções primitivas com que Marina Tsvetáieva (1892-1941) trabalha. Os poetas gelados leem as ideias de Valéry como se fossem sagradas. Mas, no mesmo Monsieur Teste, ele nos alerta: “As ideias são, para mim, meios de transformação”. Afirma ele que uma ideia é “um meio de transformar uma questão”. Elas não são, portanto, mandamentos ou pedras. Como nos diz Marina, a ideia é um fogo que só existe enquanto arde.
Sigo a obsessão de Marina pelas chamas e chego à imagem dos engolidores de fogo, que, nos circos e nas feiras, tragam suas labaredas. Também Marina fez da poesia um instrumento de colheita das ardências do mundo. “Serei fogo”, ela reafirma em 1921. E não se cansa de exclamar: “É tão bom viver no meio do fogo!”. Não era uma fuga do real, mas uma maneira de devorá-lo. “Eu nunca escrevo, sempre transcrevo”, ela definia sua literatura. Em outra carta, revela a expressão que gostaria de ler em seu túmulo: “Estenógrafa do Ser”. E mais nada.
Rigorosa taquígrafa da alma, Marina não considerava suas emoções tolices, debilidades, imbecilidades, mas, antes disso, saltos sobre o real. Seus versos são conquistas não de superfícies geladas ou de palavras vazias, mas dos ardentes segredos que constituem a alma das coisas. Ela duvidava, até, que seus poemas merecessem o nome de literatura. “A literatura? Não!”, escreveu, em 1920. “Não a literatura – a autodevoração pelo fogo”.
Em seus breves, mas intensos, 49 anos de vida, Marina atravessou duas guerras mundiais e uma revolução, a de Outubro. Seu marido se engajou nas fileiras dos brancos para combater os bolcheviques. Uma de suas filhas morreu de fome e de inanição. A família se exilou. Quando, enfim, retornaram a Moscou, foram mais uma vez perseguidos. Atordoada pela invasão alemã de 1941, Marina chega a seu limite e comete suicídio. A mulher é mais fraca que sua poesia.
Em carta ao poeta Boris Pasternak, Marina faz uma distinção entre os poetas e aqueles que escrevem versos. Conheceu muitas pessoas que escreviam versos. “Escreviam admiravelmente seus poemas ou (mais raramente) escreviam poemas admiráveis. Isso é tudo.” Não admitia, porém, chamá-los de poetas. “A marca da labuta, que é a do poeta, não a vi em ninguém: ela chameja a uma versta de distância!”
Marina não tinha pudor algum em afirmar a superioridade das confissões sobre os poemas. “O principal: meus cadernos de notas – minha paixão, porque são – o mais vivo.” Nos diários, sentia-se mais próxima das “almas dançantes”, como a da poeta alemã Bettina Brentano (1785-1859), em quem sempre se espelhou. Até os 13 anos de idade, Bettina não sabia o que era um espelho. Um dia, sentada ao lado das irmãs, viu, refletida em um painel, a imagem de um grupo de moças. Reconheceu as irmãs, mas não uma estranha menina de tranças que a observava “com olhos de fogo”. Não foi fácil entender que aquela menina era ela mesma. A imagem de si como golpe. A visão do mundo como um incêndio que avança. Bettina se torna o espelho de Marina.
Mas nem essas imagens consoladoras a salvam do medo. “Tenho medo – de tudo. Dos olhos, do escuro, dos passos e, mais que tudo – de mim mesma.” O medo é, em Marina, a consciência do fogo. De uma realidade interior que queima, em descompasso com a indiferença e dureza da realidade. “No fogo da vida me criaste,/ na estepe gelada me atiraste!”, ela escreve em 1920. Não podia adaptar-se a um mundo em que as guerras eram jogos, em que a morte era burocrática, em que as palavras eram blocos de gelo. Sua escrita incandescente absorve os restos de calor que resistem nas fendas do planeta. Estenógrafa do Ser, a ela cabia anotar e transcrever, antes que ele se perdesse, o brilho do humano.
Espelhando-se ainda em Bettina Brentano, Marina se definiu como “uma dançarina da alma”. Escreveu: “De que preciso neste mundo? De minha emoção, ponto mais alto de minha alma”. Falava não da emoção barata e chorosa que Paul Valéry repudiou, que é só lamento e sentimentalismo. Referia-se a algo mais denso, que se desdobra em almas – não o princípio espiritual, mas o feixe de afetos, paixões e ideias que agitam o homem. Escrever poesia, para Marina, era transcrever essa convulsão das almas. Era devorá-la, para depois cuspi-la em palavras.
Sentia-se uma “desclassificada”, isto é, alguém – por força da sensibilidade – fora “de qualquer casta, de qualquer profissão, de qualquer nível”. Como aceitar, então, o rótulo elegante de poeta? Não podia suportar o rito de “incensório, genuflexões, monumentos em vida”. Colocava-se, ainda, muito além dos miseráveis, que pelo menos têm uma perda a lamentar. “Atrás do imperador, há imperadores; atrás dos miseráveis – miseráveis; atrás de mim – o vazio.”
Eu lia, assombrado, as confissões de Marina quando, em um intervalo, encontrei-me com Antônio Torres. Sem perceber o que me dava, ele lembrou a célebre fórmula de James Joyce, expressa por Stephen Dedalus no Retrato do artista enquanto jovem. Lá estão os três pilares joyceanos para a literatura: “silêncio, exílio, astúcia”. Voltei a Marina Tsvetáieva. Nada mais silencioso que o crepitar de um fogo. Nenhuma sensação mais dolorosa de degredo do que a insuficiência das palavras. Só a astúcia dos poetas para fazer algo disso.
José Castello, in Sábados inquietos

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