sexta-feira, 27 de maio de 2016

Hospitais azuis

Certa vez dei uma conferência sobre García Lorca, anos depois de sua morte, e um dos espectadores me perguntou:
- Porque o senhor disse na Ode a Federico que por ele “pintam de azul os hospitais”?
- Olhe, companheiro - respondi -, fazer perguntas desse tipo a um poeta é como perguntar a idade das mulheres. A poesia não é uma matéria estática mas uma corrente fluida que muitas vezes escapa das mãos do próprio criador. Sua matéria-prima está composta de elementos que são e ao mesmo tempo não são, de coisas existentes e inexistentes. De qualquer modo tratarei de responder-lhe com sinceridade. Para mim a cor azul é a mais bela das cores. Tem a implicação do espaço humano, como a abóbada celeste, em direção à liberdade e à alegria. A presença de Federico, sua magia pessoal, impunham uma atmosfera de júbilo ao seu redor. Meu verso provavelmente quer dizer que inclusive os hospitais, inclusive a tristeza dos hospitais, podiam se transformar sob o sortilégio de sua influência e se verem convertidos subitamente em belos edifícios azuis.
Federico teve uma antevisão de sua morte. Certa vez que voltava de uma tournée teatral me chamou para contar um fato muito estranho. Com os artistas de “La Barraca” tinha chegado a um povoado longínquo de Castilla, acampando nas redondezas. Fatigado pelas preocupações da viagem, Federico não conseguia dormir. Ao amanhecer levantou-se e saiu a vagar sozinho pelos arredores. Fazia frio, esse frio de punhal que Castilla reserva para o viajante, para o forasteiro. A névoa se desprendia em massas brancas e convertia tudo em sua dimensão fantasmagórica.
Um grande gradil de ferro oxidado, estátuas e colunas em ruínas, caídas entre as folhas secas. Deteve-se na porta de uma antiga propriedade. Era a entrada para o extenso parque de uma quinta feudal. O abandono, a hora e o frio tornavam a solidão mais penetrante. Federico sentiu-se subitamente oprimido pelo que viria daquele amanhecer, por algo confuso que ali tinha que acontecer. Sentou-se num capitel tombado.
Um carneiro pequenino começou a pastar entre as ruínas e sua aparição era como um pequeno anjo de névoa que humanizava subitamente a solidão, caindo como uma pétala de ternura sobre a solidão do lugar. O poeta sentiu-se acompanhado.
De súbito um bando de porcos entrou também no recinto. Eram quatro ou cinco animais escuros, porcos negros semi-selvagens com fome feroz e patas de pedra.
Federico presenciou então uma cena espantosa. Os porcos lançaram-se sobre o cordeiro e, ante o horror do poeta, despedaçaram-no e o devoraram.
Esta cena de sangue e solidão fez com que Federico ordenasse a seu teatro ambulante continuar imediatamente o caminho.
Ainda transido de horror, três meses antes da guerra civil, Federico me contava esta história terrível.
Vi depois, cada vez com maior clareza, que aquele acontecimento foi a representação antecipada de sua morte, a premonição de sua incrível tragédia.
Federico García Lorca não foi fuzilado; foi assassinado. Naturalmente ninguém podia pensar que o matariam algum dia. De todos os poetas da Espanha era o mais amado, o mais querido e o mais semelhante a um menino pela sua alegria maravilhosa. Quem poderia crer que tivesse sobre a terra, e sobre sua terra, monstros capazes de um crime tão inexplicável?
Aquele crime foi para mim o acontecimento mais doloroso de uma longa luta. A Espanha sempre foi um campo de gladiadores, uma terra com muito sangue. A praça de touros, com seu sacrifício e sua elegância cruel, repete - ornamentado festivamente - o antigo combate mortal entre a sombra e a luz.
A Inquisição encarcera Frei Luís de León, Quevedo padece em seu calabouço, Colón caminha com grilhões nos pés. E o espetáculo máximo foi o ossário no Escorial, como agora é o Monumento a los Caídos com uma cruz sobre um milhão de mortos e sobre prisões escuras e incontáveis.
Pablo Neruda, in Confesso que vivi

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