quinta-feira, 31 de março de 2016

Lúdica Música e Vander Lee - Seção 32

Camelos também choram


Eu tinha lido que, lá na Índia, elefantes olhando o crepúsculo, às vezes, choram.
Mas agora está aí esse filme “Camelos também choram”.
A gente sabe que porcos e cabritos quando estão sendo mortos soltam gemidos e berros dilacerantes. Mas quem mata galinha, no interior, nunca relatou ter visto lágrimas nos olhos delas.
Contudo, esse filme feito sobre uma comunidade de pastores de ovelhas e camelos, lá na Mongólia, mostra que os camelos choram, mas choram não diante da morte, mas em certa circunstância que faria chorar qualquer ser humano. E, na plateia, eu vi, os não camelos também choravam.
Para nós, tão afastados da natureza, olhando a dureza do asfalto e a indiferença dos muros e vitrines; para nós que perdemos o diálogo com plantas e animais, e, por consequência, conosco mesmos, testemunhar com aquela bela família de mongóis o nascimento de um filhote de camelo e sua relação com a mãe, é uma forma de reencontrar a nossa própria e destroçada humanidade.
É isto: eles vivem num deserto. Terra árida, pedregosa. Eles, dentro daquelas casas redondas de lona e madeira, que podem ser montadas e desmontadas. Lá fora um vento permanente ou o assombro do silêncio e da escuridão. E as ovelhas e carneiros ali em torno, pontuando a paisagem e sendo a fonte de vida dos humanos.
Sucede, então, que a rotina é quebrada com o parto difícil de um camelinho. Por isto, a mãe camela o rejeita. O filho ali, branquinho, mal se sustentando sobre as pernas, querendo mamar e ela fugindo, dando patadas e indo acariciar outro filhote, enquanto o rejeitado geme e segue inutilmente a mãe na seca paisagem. A família mongol e vizinhos tentam forçar a mãe camela a alimentar o filho. Em vão.
Só há uma solução”, diz alguém da família: “mandar chamar o músico!". Ao ouvir isto estremeci como se me preparasse para testemunhar um milagre. E o milagre começou musicalmente a acontecer.
Dois meninos montam agilmente seus camelos e vão a uma vila próxima chamar o músico. É uma vila pobre, mas já com coisas da modernidade, motos, televisão, e, na escola de música, dentro daquele deserto, jovens tocam instrumentos e dançam, como se a arte brotasse lindamente das pedras.
O professor de música, como se fosse um médico de aldeia chamado para uma emergência, viaja com seu instrumento de arco e cordas para tentar resolver a questão da rejeição materna.
Chega. E, ali no descampado, primeiro coloca o instrumento com uma bela fita azul sobre o dorso da mãe camela. A família mongol assiste à cena. Um vento suave começa a tanger as cordas do instrumento.
A natureza por si mesma harpeja sua harmônica sabedoria. A camela percebe. Todos os camelos percebem uma música reordenando suavemente os sentidos. Erguem a cabeça, aguçam os ouvidos, e esperam.
A seguir, o músico retoma seu instrumento e começa a tocá-lo, enquanto a dona da camela afaga o animal e canta. E enquanto cordas e voz soam, a mãe camela começa a acolher o filhote, empurrando-o docemente para suas tetas.
E o filhote, antes rejeitado e infeliz, vem e mama, mama, mama desesperadamente feliz!... E enquanto ele mama e a música continua, a câmara mostra em primeiro plano que lágrimas desbordam umas após outras dos olhos da mãe camela, dando sinais de que a natureza se reencontrou a si mesma, a rejeição foi superada, o afeto reuniu num todo amoroso os apartados elementos.
Nós, humanos, na plateia, olhamos aquilo estarrecidos. Maravilhados! Os mongóis na cena constatam apenas mais um exercício de sua milenar sabedoria.
E nós que perdemos o contato com o micro e o macrocosmos ficamos bestificados com nossa ignorância de coisas tão simples e essenciais.
Bem que os antigos falavam da terapêutica musical. Casos de instrumentos que abrandavam a fúria, curavam a surdez, a hipocondria, e saravam até a mania de perseguição.
Bem que o pensamento místico hindu dizia que a vida se consubstancia no universo com o primeiro som audível - um ré bemol - e que a palavra só surgiria mais tarde.
Bem que os pitagóricos, na Grécia, sustentavam que o universo era uma partitura musical, que o intervalo musical entre a Terra e a Lua era de um tom e que o cosmos era regido pela harmonia das esferas.
Os primitivos na Mongólia sabem disto. Os camelos também.
Mas nós, os pós-modernos, cultivamos a rejeição, a ruptura e o ruído.
Haja professor de música para consertar isto.
Affonso Romano de Sant’Anna, in Tempo de delicadeza

A delicadeza de Van Gogh


Amendoeira em Flor (1890), de Vincent Van Gogh

Loucura e consciência

A loucura, longe de ser uma anomalia, é a condição normal humana. Não ter consciência dela, e ela não ser grande, é ser homem normal. Não ter consciência dela e ela ser grande, é ser louco. Ter consciência dela e ela ser pequena é ser desiludido. Ter consciência dela e ela ser grande é ser gênio.
Fernando Pessoa, in Aforismos e afins

Noturno III

Um cartaz luminoso ri no ar
E mais outro... e mais!...
Ó Noite, ó minha nega
Toda acesa
De letreiros,
Já pensaste como ainda serias mais linda
Muito mais
Se nós, os poetas, não soubéssemos ler?
Mário Quintana

Meu coração

Passei o dia pensando – coração meu, meu coração. Pensei e pensei tanto que deixou de significar uma forma, um órgão, uma coisa. Ficou só com – cor, ação – repetido, invertido – ação, cor – sem sentido – couro, ação e não. Quis vê-lo, escapava. Batia e rebatia, escondido no peito. Então fechei os olhos, viajei. E como quem gira um caleidoscópio, vi:
Meu coração é um sapo rajado, viscoso e cansado, à espera do beijo prometido capaz de transformá-lo em príncipe.
Meu coração é um álbum de retratos tão antigos que suas faces mal se adivinham. Roídas de traça, amareladas de tempo, faces desfeitas, imóveis, cristalizadas em poses rígidas para o fotógrafo invisível. Este apertava os olhos quando sorria. Aquela tinha um jeito peculiar de inclinar a cabeça. Eu viro as folhas, o pó resta nos dedos, o vento sopra.
Meu coração é um mendigo mais faminto da rua mais miserável.
Meu coração é um ideograma desenhado a tinta lavável em papel de seda onde caiu uma gota d’água. Olhado assim, de cima, pode ser Wu Wang, a Inocência. Mas tão manchado que talvez seja Ming I, o Obscurecimento da Luz. Ou qualquer um, ou qualquer outro: indecifrável.
Meu coração não tem forma, apenas som. Um noturno de Chopin (será o número 5?) em que Jim Morrison colocou uma letra falando em morte, desejo e desamparo, gravado por uma banda punk. Couro negro, prego e piano.
Meu coração é um bordel gótico em cujos quartos prostituem-se ninfetas decaídas, cafetões sensuais, deusas lésbicas, anões tarados, michês baratos, centauros gays e virgens loucas de todos os sexos.
Meu coração é um traço seco. Vertical, pós-moderno, coloridíssimo de neon, gravado em fundo preto. Puro artifício, definitivo.
Meu coração é um entardecer de verão, numa cidadezinha à beira-mar. A brisa sopra, saiu a primeira estrela. Há moças na janela, rapazes pela praça, tules violetas sobre os montes onde o sol se pôs. A lua cheia brotou do mar. Os apaixonados suspiram. E se apaixonam ainda mais.
Meu coração é um anjo de pedra com a asa quebrada.
Meu coração é um bar de uma única mesa, debruçado sobre a qual um único bêbado bebe um único copo de bourbon, contemplado por um único garçom. Ao fundo, Tom Waits geme um único verso arranhado. Rouco, louco.
Meu coração é um sorvete colorido de todas as cores, é saboroso de todos os sabores. Quem dele provar será feliz para sempre.
Meu coração é uma sala inglesa com paredes cobertas por papel de florzinhas miúdas. Lareira acesa, poltronas fundas, macias, quadros com gramados verdes e casas pacíficas cobertas de hera. Sobre a renda branca da toalha de mesa, o chá repousa em porcelana da China. No livro aberto ao lado, alguém sublinhou um verso de Sylvia Plath: “I´m too pure for you or anyone”. Não há ninguém nessa sala de janelas fechadas.
Meu coração é um filme noir projetado num cinema de quinta categoria. A plateia joga pipoca na tela e vaia a história cheia de clichês.
Meu coração é um deserto nuclear varrido por ventos radiativos.
Meu coração é um cálice de cristal puríssimo transbordante de licor de strega. Flambado, dourado. Pode-se ter visões, anunciações, pressentimentos, ver rostos e paisagens dançando nessa chama azul de ouro.
Meu coração é o laboratório de um cientista louco varrido, criando sem parar Frankensteins monstruosos que sempre acabam por destruir tudo.
Meu coração é uma planta carnívora morta de fome.
Meu coração é uma velha carpideira portuguesa, coberta de preto, cantando um fado lento e cheia de gemidos – ai de mim! ai, ai de mim!
Meu coração é um poço de mel, no centro de um jardim encantado, alimentando beija-flores que, depois de prová-lo, transformam-se magicamente em cavalos brancos alados que voam para longe, em direção à estrela Vega. Levam junto quem me ama, me levam junto também.
Faquir involuntário, cascata de champanha, púrpura rosa do Cairo, sapato de sola furada, verso de Mário Quintana, vitrina vazia, navalha afiada, figo maduro, papel crepom, cão uivando pra lua, ruína, simulacro, varinha de incenso. Acesa, aceso – vasto, vivo: meu coração é teu.
Caio Fernando Abreu, in Pequenas epifanias

quarta-feira, 30 de março de 2016

Gonzaguinha e Ana Carolina - Não dá mais pra segurar (Explode coração)



Gonzaguinha Presente - Duetos é o disco que comemora os 70 anos do artista se estivesse vivo. Idealizado e produzido por Miguel Plopschi, que utilizou da tecnologia digital para criar os duetos póstumos entre o artista e grandes nomes da atualidade musical como Ivete Sangalo, Maria Rita, Alcione, Zeca Pagodinho, Alexandre Pires, Ana Carolina, Zeca Baleiro, Victor e Leo, Martinho da Vila, Lenine, Luiza Possi e Fagner (Fonte: Youtube).

Um livro, um machado

Em uma carta ao amigo de escola Oskar Pollack, escrita quando tinha apenas dezenove anos de idade, o escritor tcheco Franz Kafka anota: “Um livro tem que ser um machado para o mar congelado dentro de nós”. Livros fracos não quebram as couraças, os medos, os vícios que bloqueiam o peito do leitor. A literatura só é digna desse nome, pensava Kafka, quando descongela o sangue de quem lê.
José Castello, in Sábados inquietos

A morte da tartaruga

O menininho foi ao quintal e voltou chorando: a tartaruga tinha morrido. A mãe foi ao quintal com ele, mexeu na tartaruga com um pau (tinha nojo daquele bicho) e constatou que a tartaruga tinha morrido mesmo. Diante da confirmação da mãe, o garoto pôs-se a chorar ainda com mais força. A mãe a princípio ficou penalizada, mas logo começou a ficar aborrecida com o choro do menino. “Cuidado, senão você acorda o seu pai”. Mas o menino não se conformava. Pegou a tartaruga no colo e pôs-se a acariciar-lhe o casco duro. A mãe disse que comprava outra, mas ele respondeu que não queria, queria aquela, viva! A mãe lhe prometeu um carrinho, um velocípede, lhe prometeu uma surra, mas o pobre menino parecia estar mesmo profundamente abalado com a morte do seu animalzinho de estimação.
Afinal, com tanto choro, o pai acordou lá dentro, e veio, estremunhado, ver de que se tratava. O menino mostrou-lhe a tartaruga morta. A mãe disse: ― “Está aí assim há meia hora, chorando que nem maluco. Não sei mais o que faço. Já lhe prometi tudo mas ele continua berrando desse jeito”. O pai examinou a situação e propôs: ― “Olha, Henriquinho. Se a tartaruga está morta não adianta mesmo você chorar. Deixa ela aí e vem cá com o pai”. O garoto depôs cuidadosamente a tartaruga junto do tanque e seguiu o pai, pela mão. O pai sentou-se na poltrona, botou o garoto no colo e disse: ― “Eu sei que você sente muito a morte da tartaruguinha. Eu também gostava muito dela. Mas nós vamos fazer pra ela um grande funeral.” (Empregou de propósito a palavra difícil). O menininho parou imediatamente de chorar. “Que é funeral?” O pai lhe explicou que era um enterro. “Olha, nós vamos à rua, compramos uma caixa bem bonita, bastante balas, bombons, doces e voltamos para casa. Depois botamos a tartaruga na caixa em cima da mesa da cozinha e rodeamos de velinhas de aniversário. Aí convidamos os meninos da vizinhança, acendemos as velinhas, cantamos o “Happy-Birth-Day-To-You” pra tartaruguinha morta e você assopra as velas. Depois pegamos a caixa, abrimos um buraco no fundo do quintal, enterramos a tartaruguinha e botamos uma pedra em cima com o nome dela e o dia em que ela morreu. Isso é que é funeral! Vamos fazer isso?” O garotinho estava com outra cara. “Vamos, papai, vamos! A tartaruguinha vai ficar contente lá no céu, não vai? Olha, eu vou apanhar ela”. Saiu correndo. Enquanto o pai se vestia, ouviu um grito no quintal. “Papai, papai, vem cá, ela está viva!” O pai correu pro quintal e constatou que era verdade. A tartaruga estava andando de novo, normalmente. “Que bom, hein?” ― disse ― “Ela está viva! Não vamos ter que fazer o funeral!” “Vamos sim, papai” ― disse o menino ansioso, pegando uma pedra bem grande ― “Eu mato ela.”

MORAL: O IMPORTANTE NÃO É A MORTE, É O QUE ELA NOS TIRA.
Millôr Fernandes, in Fábulas fabulosas

O teste da rosa

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Digamos que você tem uma rosa. Uma só. Antes que eu continue, ela me interrompe: de que cor? Pensei na rosa, mas não pensei na cor. Cor-de-rosa, digo. Ela faz uma carinha de quem não aprova. Rosa cor-de-rosa, que falta de imaginação! Branca, me corrijo. Branca, não, ela corta. Vermelha. Tá bem. Uma rosa vermelha. Vermelhinha? Sim, vermelhíssima. Da cor de sangue vivo.
Digamos que você tem uma rosa, recomeço. É a única rosa que existe no mundo. A última? Não interessa. No caso é a única. E é sua. Digamos que você quer dar essa rosa a alguém. E se eu não quiser dar? Aí a história acaba. Continuo? Continua. Você tem que dar essa rosa a alguém. Uma pessoa só? Sim, uma só. Fui dar corda, a menina não para de falar. Verdadeira matraca. Já quer saber por que tem de dar rosa. Se é dela e única, não vai dar a ninguém. Vai vender.
Mas a história é assim: é a única, a última rosa do mundo. E você tem que passar pra frente. Se não der, ela explode e queima a sua mão. Carinha de nojo, ela resmunga: rosa que explode e pega fogo, essa não. Finjo que não ouço e vou adiante. Você vai entregar essa rosa a quem mais a merece. A faladeira quer saber se a rosa é bonita. Lindíssima, já disse. Fresquinha. A última e mais bela rosa do mundo. Não, não pode guardar. Nem pode vender.
Novas tentativas de sair do script, mas eu fecho todas as portas. Não pode mudar. Não interessa quem inventou. É o teste da rosa. Existe desde o princípio do mundo, digo convicto. E cale a boca, por favor. Mais um minuto e a rosa estoura na sua mão. Não é bomba, mas estoura. História inventada é assim. Rosa estoura e pronto. Você tem que dar a rosa pra alguém que a merece. A pessoa que você mais ama. Dona do seu coração. Vale, vale tudo. Gente grande, ou criança. Quem você quiser. Não, não podem ser duas pessoas. Mesmo casadas, morando na mesma casa, não pode. Também não vale. Pétala por pétala, não. É a rosa inteira, perfumada. Uma beleza. Já disse que é a mais bonita do mundo. Nunca mais vai existir outra igual. E depressa, senão explode. Na sua mão, não no vaso. Fresquinha, com gotas de orvalho que brilham como pequenos sóis. Vamos logo, quem? A quem você dá essa rosa? Ela sorri, zombeteira, e me faz a pergunta fatal: você está crente que eu dou pra você, não está?
Otto Lara Resende, in Bom dia para nascer

O óbvio ululante

LIE – Em inglês, significa mentira.
LEI – Em português, significa…
Joseph Noslile, in Tratado dos absurdos cotidianos

Sem ? é impossível perguntar

Serginho olhou para o teclado e apertou a tecla 2.
Em seguida, digitou o shift e apertou o 2.
Apareceu o símbolo @. O que será isso?
Depois, ele apertou o shift e o símbolo + surgiu no monitor. Serginho ria, divertia-se com a novidade.
Se não apertasse a tecla shift, em lugar do + aparecia o sinal =.
O que será que queria dizer?
Que o + e o = são iguais, dependendo da tecla shift?
Se quisesse o 5, bastava apertar a tecla 5.
No entanto, ao apertar o shift junto com o 5, o que apareceu na tela foi um símbolo engraçado, %.
Perguntou e o pai explicou que era porcentagem.
O que quer dizer porcentagem?
O pai ficou calado uns minutos.
Veja! Você tem o número 100. Mas deseja apenas 10% de 100. Ou seja, você deseja apenas 10.
Por que vou querer 10% de 100?
Era uma boa pergunta, o pai ficou de responder no dia seguinte, estava atrasado para o trabalho. Serginho teve certeza de que o pai não sabia o que era porcentagem e ficou alegre. Tão bom descobrir que o pai da gente não sabe todas as coisas do mundo. Assim fica igual à gente. Havia meninos cujos pais sabiam tudo, faziam tudo, podiam tudo.
Eram meninos chatos, pentelhos, pareciam os pais. Ou será que eram mentirosos?
Todavia, Serginho não estava preocupado com nada disso. Tinha descoberto as mágicas do teclado, as estranhezas que podia fazer com ele.
Ao apertar o shift e o 3, surgia uma gradinha. Assim: #.
O que seria? Para que serve? Para fazer uma jaula? Para prender um mosquito? A questão era: para que servem as coisas, os sinais diferentes que a gente pode produzir no teclado de um computador?
Serginho gostou do 8 misturado ao shift. Ele produzia uma estrelinha simpática “.
Aproveitou, fez um monte, uma linha inteira
““““““““““““““““““““““““““““““““““
Já o 6 com o shift fazia surgir um chapeuzinho ^. Serginho não teve dúvidas. "Vou ter uma chapelaria", pensou.
^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^^
Havia uma maçãzinha, ele apertou, nada aconteceu.
Ficou desapontado. Imaginou que sairiam maçãs, igual à^máquina de refrigerantes que havia na lanchonete da esquina.
Apertou o 1 sozinho. Nada se passou. Quando apertou o 1 com o shift, viu o sinal !.
Quando o pai chegou, ele perguntou o que era.
Isso é uma exclamação.
E o que é uma exclamação?
Como explicar uma exclamação?
Olhe, vou exclamar! Assim você saberá o que é a exclamação.
Então, disse, bem alto:
Puxa! Meu deus! Ora! Nem me diga!
Tudo com ênfase, firmeza, exclamativo.
Entendeu?
Não!
O pai aproveitou:
Viu? Esse não que você disse foi uma exclamação! Deu para sacar?
Ah, uma exclamação é um não bem forte?
A exclamação é o contrário da interrogação.
E o que é interrogação?
É uma pergunta.
Quer dizer que a exclamação é uma não-pergunta?
O pai disse que precisava ir trabalhar.
Serginho apertou a tecla que ficava perto do shift e parecia um tracinho caindo, bêbado. Saiu no monitor um ?.
O que é esse pauzinho torto?, pensou. Parece um corcunda!
O irmão mais velho, de 17 anos, passou com o skate nas mãos.
Sabe o que é isso, Ciro?
Sei, uma interrogação!
Apesar de brigar muito com o irmão, Serginho gostava dele, admirava. Ficou feliz, ia saber o que é uma interrogação.
O que é interrogação?
Sabe, é a coisa que você precisa quando vai fazer uma pergunta. Sem ela você não pode perguntar, ninguém vai saber que é pergunta.
E a exclamação?
É quando você exclama.
E quando exclamo?
Quando você diz puuuuuxxxxaaaaa!
Puuuuuuuuuxxxxxxaaaaa, tão fácil!
Serginho tremeu. Que maravilha! Coisa mais incrível. Se não existisse o ? ninguém poderia perguntar. Como viver sem perguntar? Todo mundo sabe que para ter o sinal ? é preciso apertar o shift e o tracinho caindo? Ciro saiu, estava atrasado, deixando Serginho intrigado. Que coisa engraçada.
Quer dizer que se eu não tiver um ? não posso fazer uma pergunta? E se não existisse o shift no teclado, não poderíamos perguntar? Estava achando tudo fascinante. O pai tinha trazido o computador, presente para os filhos, os mais velhos começavam a precisar para trabalhos da escola, para a internet, a irmã queria namorar por meio dele, a mãe desejava planejar o orçamento familiar, era uma família organizada.
O computador tinha chegado na noite anterior e Serginho desde manhã estava tentando decifrar mistérios. Era divertido, complicado. Acima de tudo, mágico. Ele podia digitar uma letra (ainda que não soubesse que a palavra era digitar) e colocá-la fechada dentro de duas cercas (8), podia criar um mundo de estrelas “, de +, de chapéus ^.
Não sabia ainda o que fazer com tudo, mas descobriria.
Teria de ser sozinho, o pai mostrava não ter paciência. Ou talvez não soubesse. Porque o computador parecia remeter a coisas da vida que não tinham explicações fáceis.
Igual aquela vez em que perguntara ao pai:
O que é vida?
Por que não se vê o ar?
Quando nasceram as letras?
Por que a água molha?
Por que o número 7 é o 7 e não o 8, e o 9 é 9 e não o 2?
Como a voz vem pelo telefone?
Serginho estava descobrindo que a vida e o computador abrigam coisas que os adultos não sabem, não conhecem, não explicam. Que a vida e o computador têm perguntas sem respostas. Mas que respostas existem e estão dentro do computador e das pessoas.
Disposto a descobrir, ele começou a apertar todas as teclas:
Caps lock, return, shift, tab, clear, help, home, page up, page down, control, option”
Estranhas palavras. Quem falava assim? Língua de computador. Encheu o monitor de números, símbolos, signos, letras.
E aí viu uma tecla delete.
Apertou.
Tudo sumiu, ficou o branco.
O computador tinha engolido suas coisas de volta, mas estava pronto a devolver.
Devolver seus mistérios, sua mágica, o encantamento do shift, essa tecla solitária que produz tanta diferença.
Ignácio de Loyola Brandão, in Deixa que eu conto

terça-feira, 29 de março de 2016

Grito de Alerta - Gonzaguinha e Maria Rita

Ostra feliz não faz pérola

Ostras são moluscos, animais sem esqueleto, macias, que representam as delícias dos gastrônomos. Podem ser comidas cruas, com pingos de limão, paellas, sopas. Sem defesas – são animais mansos -, seriam uma presa fácil dos predadores. Para que isso não acontecesse, a sua sabedoria as ensinou a fazer casas, conchas duras, dentro das quais vivem. Pois havia num fundo de mar uma colônia de ostras, muitas ostras. Eram ostras felizes. Sabia-se que eram ostras felizes porque de dentro de suas conchas saía uma delicada melodia, música aquática, como se fosse um canto gregoriano, todas cantando a mesma música. Com uma exceção: de uma ostra solitária que fazia um solo solitário. Diferente da alegre música aquática, ela cantava um canto muito triste. As ostras felizes se riam dela e diziam: “Ela não sai da sua depressão…”. Não era depressão. Era dor. Pois um grão de areia havia entrado dentro de sua carne e doía, doía, doía. E ela não tinha jeito de se livrar dele, do grão de areia. Mas era possível livrar-se da dor. O seu corpo sabia que, para se livrar da dor que o grão de areia lhe provocava, em virtude de suas asperezas, arestas e pontas, bastava para envolvê-lo com uma substância lisa, brilhante e redonda. Assim, enquanto cantava seu canto triste, o seu corpo fazia o trabalho – por causa da dor que o grão de areia lhe causava. Um dia, passou por ali um pescador com o seu barco. Lançou a rede e toda a colônia de ostras, inclusive a sofredora, foi pescada. O pescador se alegrou, levou-as para casa e sua mulher fez uma deliciosa sopa de ostras. Deliciando-se com as ostras, de repente seus dentes bateram num objeto duro que estava dentro de uma ostra. Ele o tomou nos dedos e sorriu de felicidade: era uma pérola, uma linda pérola. Apenas a ostra sofredora fizera uma pérola. Ele tomou-a e deu-a de presente para a sua esposa.
Isso é verdade para as ostras. E é verdade para os seres humanos. No seu ensaio sobre o nascimento da tragédia grega a partir do espírito da música, Nietzche observou que os gregos, por oposição aos cristãos, levavam a tragédia a sério. Tragédia era tragédia. Não existia para eles, como existia para os cristãos, um céu onde a tragédia seria transformada em comédia. Ele se perguntou então das razões por que os gregos, sendo dominados por esse sentimento trágico da vida, não sucumbiram ao pessimismo. A resposta que encontrou foi a mesma da ostra que faz uma pérola: eles não se entregaram ao pessimismo porque foram capazes de transformar a tragédia em beleza. A beleza não elimina a tragédia, mas a torna suportável. A felicidade é um dom que deve ser simplesmente gozado. Ela se basta. Mas ela não cria. Não produz pérolas. São os que sofrem que produzem a beleza, para parar de sofrer. Esses são os artistas. Beethoven – como é possível que um homem completamente surdo, no fim da vida, tenha produzido uma obra que canta a alegria? Van Gogh, Cecília Meireles, Fernando Pessoa…
Rubem Alves, in Ostra feliz não faz pérola

Bucólica

Uma menina toca um Guqin, um instrumento musical chinês com mais de 3.000 anos de existência, na aldeia Zhuotongjing, na China. Imagem: Zhong Min/Xinhua.

Obras

Para falar ao vento bastam palavras, para falar ao coração são necessárias obras.”
Padre Antônio Vieira

A incapacidade de ser verdadeiro

Paulo tinha fama de mentiroso. Um dia chegou em casa dizendo que vira no campo dois dragões-da-independência cuspindo fogo e lendo fotonovelas.
A mãe botou-o de castigo, mas na semana seguinte ele veio contando que caíra no pátio da escola um pedaço de lua, todo cheio de buraquinhos, feito queijo, e ele provou e tinha gosto de queijo. Desta vez Paulo não só ficou sem sobremesa como foi proibido de jogar futebol durante quinze dias.
Quando o menino voltou falando que todas as borboletas da Terra passaram pela chácara de Siá Elpídia e queriam formar um tapete voador para transportá-lo ao sétimo céu, a mãe decidiu levá-lo ao médico. Após o exame, o Dr. Epaminondas abanou a cabeça:
Não há nada a fazer, Dona Coló. Este menino é mesmo um caso de poesia.
Carlos Drummond de Andrade, in Contos Plausíveis

Os terroristas

Era um professor duro, exigente — e implacável. As provas eram feitas sem aviso prévio. Todos os trabalhos valiam nota e eram corrigidos segundo os critérios mais rigorosos. Resultado: no fim do ano quase todos os alunos estavam à beira da reprovação. As notas — que ele anotava cuidadosamente no livro de chamada — eram as mais baixas possíveis.
O que fazer? Reuniam-se todos os dias no bar em frente ao colégio para discutir a situação, mas nada lhes ocorria. Até que um deles teve uma ideia brilhante.
O livro de chamada. A solução estava ali: tinham de se apossar do livro de chamada e mudar as notas. Um 0 poderia ser transformado em 8. Um 1 poderia virar 7 (ou 10, dependendo do grau de ambição).
O problema era pegar o livro, que o professor não largava nunca — nem mesmo para ir ao banheiro. Aparentemente, só uma catástrofe poderia separá-los.
Recorreram, pois, à catástrofe. Um dos alunos telefonou do orelhão em frente ao colégio, avisando que havia um princípio de incêndio na casa do professor. Avisado, o pobre homem saiu correndo da sala de aula — deixando sobre a mesa o famigerado livro de presenças.
Acreditareis se eu disser que ninguém tocou no livro?
Ninguém tocou no livro. Os rapazes se olhavam, mas nenhum deles tomou a iniciativa de mudar as notas. Às vezes a consciência pesa mais que a ameaça da reprovação.
Moacyr Scliar, in Um país chamado infância

segunda-feira, 28 de março de 2016

Amigo humano

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O leão

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A menina conduz-me diante do leão, esquecido por um circo de passagem. Não está preso, velho e doente, em gradil de ferro. Foi solto no gramado e a tela fina de arame é escarmento ao rei dos animais. Não mais que um caco de leão: as pernas reumáticas, a juba emaranhada e sem brilho. Os olhos globulosos fecham-se cansados, sobre o focinho contei nove ou dez moscas, que ele não tinha ânimo de espantar. Das grandes narinas escorriam gotas e pensei, por um momento, que fossem lágrimas. 
Observei em volta: somos todos adultos, sem contar a menina. Apenas para nós o leão conserva o seu antigo prestigio - as crianças estão em redor dos macaquinhos. Um dos presentes explica que o bicho tem as pernas entravadas, a vida inteira na minúscula jaula. Derreado, não pode sustentar-se em pé.
Chega-se um piá e, desafiando com olhar selvagem o leão, atira-lhe um punhado de cascas de amendoim. O rei sopra pelas narinas, ainda é um leão: faz estremecer a grama a seus pés.
Um de nós protesta que deviam servir-lhe a carne em pedacinhos.
Ele não tem dente?
Tem sim, não vê? O que não tem é força de morder.
Continua o moleque a jogar amendoim na cara devastada do leão. Ele nos olha e um brilho de compreensão nos faz baixar a cabeça: é conhecido o travo amargoso da derrota. Está velho, artrítico, não se aguenta das pernas, mas é um leão. De repente, sacudindo a juba, põe-se a mastigar o capim. Ora, leão come verde! Lança-lhe o guri uma pedra: acertou no olho e doeu.
O leão abriu a bocarra de dentes amarelos, não era um bocejo. Entre caretas de dor, elevou-se aos poucos nas pernas tortas. Sem sair do lugar, ficou de pé. Escancarou penosamente os beiços moles e negros, ouviu-se a rouca buzina de fordeco antigo.
Por um instante o rugido manteve suspensos os macaquinhos e fez bater mais depressa o coração da menina. O leão soltou seis ou sete urros. Exausto, deixou-se cair de lado e fechou os olhos para sempre.
Dalton Trevisan, in Deixa que conto

Um poema

Não tenhas medo, ouve:
É um poema
Um misto de oração e de feitiço...
Sem qualquer compromisso,
Ouve-o atentamente,
De coração lavado.
Poderás decorá-lo
E rezá-lo
Ao deitar
Ao levantar,
Ou nas restantes horas de tristeza.
Na segura certeza
De que mal não te faz.
E pode acontecer que te dê paz…
Miguel Torga

O cajueiro

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O cajueiro já devia ser velho quando nasci. Ele vive nas mais antigas recordações de minha infância: belo, imenso, no alto do morro, atrás de casa. Agora vem uma carta dizendo que ele caiu.
Eu me lembro do outro cajueiro que era menor, e morreu há muito mais tempo. Eu me lembro dos pés de pinha, do cajá-manga, da grande touceira de espadas-de-são-jorge (que nós chamávamos simplesmente “tala”) e da alta saboneteira que era nossa alegria e a cobiça de toda a meninada do bairro porque fornecia centenas de bolas pretas para o jogo de gude. Lembro-me da tamareira, e de tantos arbustos e folhagens coloridas, lembro-me da parreira que cobria o caramanchão, e dos canteiros de flores humildes, “beijos”, violetas. Tudo sumira; mas o grande pé de fruta-pão ao lado de casa e o imenso cajueiro lá no alto eram como árvores sagradas protegendo a família. Cada menino que ia crescendo ia aprendendo o jeito de seu tronco, a cica de seu fruto, o lugar melhor para apoiar o pé e subir pelo cajueiro acima, ver de lá o telhado das casas do outro lado e os morros além, sentir o leve balanceio na brisa da tarde.
No último verão ainda o vi; estava como sempre carregado de frutos amarelos, trêmulo de sanhaços. Chovera; mas assim mesmo fiz questão de que Carybé subisse o morro para vê-lo de perto, como quem apresenta a um amigo de outras terras um parente muito querido.
A carta de minha irmã mais moça diz que ele caiu numa tarde de ventania, num fragor tremendo pela ribanceira; e caiu meio de lado, como se não quisesse quebrar o telhado de nossa velha casa. Diz que passou o dia abatida, pensando em nossa mãe, em nosso pai, em nossos irmãos que já morreram. Diz que seus filhos pequenos se assustaram; mas depois foram brincar nos galhos tombados.
Foi agora, em setembro. Estava carregado de flores.
Rubem Braga, in 200 crônicas escolhidas

O Amor de Tumitinha

Você também deve ter alguma palavra que aprendeu na infância, que tinha um certo significado e aquilo ficou impregnado na sua cabeça para sempre. Só anos depois veio a descobrir que a palavra não era bem aquela e nem significava aquilo. E, assim, existem várias palavras. Por exemplo:

Pé de Cachimbo - A frase “hoje é domingo, pé de cachimbo”. Na verdade, não é pé de cachimbo, mas sim pede (do verbo pedir) cachimbo. Ou seja, pede paz, tranquilidade, moleza.. E a gente sempre a imaginar um pé de cachimbo no quintal, todo florido, com cachimbos pendurados, soltando fumaça.

Nabucodonosor - Eu sempre achei que o babilônico Nabuco fosse um país chamado Nosor. Era Nabuco do Nosor. Achava que devia ser na África, perto do Quênia, por ali. Hoje já sei que Nabuco é um bar na Villaboim.

Álibi - Quando eu era garoto, tarado por filmes de bandido e mocinho, sempre achei que Álibi era o amigo do Mocinho. Claro, o Mocinho sempre tinha um Álibi e o bandido não. O Álibi, nos filmes geralmente, era um velhinho. Mas resolvia.

Atalibálago - Esta é do escritor Fernando Moraes. Quando era garoto, em Minas, viu um nome escrito com cal numa enorme parede de pedra: Atalibálogo. Adorou o nome, chegou até a comentar com o pai e nunca se esqueceu da esquisitice. Era pequeno, achava quer era um palavrão. Xingava as pessoas: seu atalibálago! Filho de uma atalibálaga! Só anos depois mais tarde, veio a descobrir que, na verdade, era um candidato a deputado que um dia acabou se elegendo e se chamava, na verdade, Ataliba Lago.

Margarida - Esta está até em uma peça. A personagem pensava: Do que a terra... Margarida...

Sulfechando - Meu primo, um dia perguntou ao pai dele o que significava o verdo Sulfechar. O pai alegou que esse verbo não existia e teve que provar com dicionário e tudo. Como o garoto insistia em conjugar o verbo, o pai perguntou onde ele tinha ouvido tal disparate. E ele disse e cantorolou aquela música do Tom Jobim: são as águas de mar sulfechando o verão...

Ventre Jesus - Aprendi a rezar Ave-Maria ainda analfabeto, com três ou quatro anos. E sempre achei que Ventre era o primeiro nome do Homem, quando dizia do nosso Ventre Jesus. Aliás, achava um belo nome para Deus: Ventre Jesus!

Tumitinha - Todo mundo conhece a música Ciranda-Cirandinha. A Adriana, uma amiga, me confessou que durante anos e anos, entendia um verso completamente diferente. Quando a letra fala o amor que tu me tinha era pouco e se acabou, ela achava que era o amor de Tumitinha era pouco e se acabou. Tumitinha era um menino, coitado. Ficava com dó do Tumitinha toda cez que cantava a música, porque o amor dele tinha se acabado. E mais, achava que Tumitinha era um japonesinho. Devia se chamar, na verdade, Tumita. Quando ela descobriu que o Tumitinha não existia, sofreu muito. Faz análise até hoje.
Mário Prata, in crônica para o jornal “O Estado de São Paulo”

ToCantE | Homenagem a Pixinguinha (Dominguinhos), com Lulinha Alencar e Mestrinho

domingo, 27 de março de 2016

Páscoa

Velhice
é um modo de sentir frio que me assalta
e uma certa acidez.
O modo de um cachorro enrodilhar-se
quando a casa se apaga e as pessoas se deitam.
Divido o dia em três partes:
a primeira pra olhar retratos,
a segunda pra olhar espelhos,
a última e maior delas, pra chorar.
Eu, que fui loura e lírica,
não estou pictural.
Peço a Deus,
em socorro da minha fraqueza,
abrevie esses dias e me conceda um rosto
de velha mãe cansada, de avó boa,
não me importo. Aspiro mesmo
com impaciência e dor.
Porque sempre há quem diga
no meio da minha alegria:
“põe o agasalho”
“tens coragem?”
“por que não vais de óculos?”
Mesmo rosa sequíssima e seu perfume de pó,
quero o que desse modo é doce,
o que de mim diga: assim é.
Pra eu parar de temer e posar pra um retrato,
ganhar uma poesia em pergaminho.
Adélia Prado

O grande clandestino

Eu me distraio muito com a passagem do tempo.
Chego às vezes a dormir. Durmo meses e anos. O tempo então aproveita e passa escondido. Mas que velocidade!
Basta ver o estado das coisas depois que desperto: quase todas fora do lugar, ou desaparecidas; outras, com uma prole imensa; outras ainda, alteradas e irreconhecíveis. Se durmo de novo e acordo, repete-se o fenômeno.
Sempre pensei que o tempo fizesse tudo às claras. Oh, não!
Eu queria convidá-los a assistir ao que ele tem feito comigo. Mas é espetáculo todo íntimo e não disponho de tribunas.
Além do mais, o tempo em pessoa é praticamente invisível, como a ventania. Só se pode apreciar o resultado de seu trabalho, nunca a sua maneira de trabalhar.
O que é preciso é nunca dormir e ficar vigilante para obrigá-lo ao menos a disfarçar a evidência de suas metamorfoses.
É de fato penoso deixar de ver as coisas tais como as vimos a primeira vez. O tempo tudo transforma e arrasa, sem nos dar aviso.
Ora. Isso entristece. Isso nos deixa intranquilos. A não ser que nos misturemos com ele, façamos dele um aliado.
Aí, sim: destruição e reconstrução se confundem. Sacos e sacos vão se enchendo e esvaziando toda a vida. Perde-se até a ideia da morte. Então a gente aproveita para erigir sistemas, tomar iniciativas, amar, lutar e cantar.
O tempo fica assim tão escondido dentro de nós, que se tem a impressão que fugiu para sempre e se esqueceu.
Em verdade, ele não repousa nunca. Nem mesmo nas pirâmides. Nem nos horizontes onde parece pernoitar.
Rói as pedras como o vento, rói os ossos como um cão. O que mais admira é a extrema delicadeza com que pratica essas violências.
Todos falam de sua impassibilidade. Não é bem isso. Tanto assim que aumenta de velocidade, à medida que nos distanciamos de nossas origens. E quase para quando o esperamos na solidão!
Meu mal é sentir-lhe a passagem como a de um animal na noite. Chego quase a tocá-lo.  Fico horas à janela vendo-o passar. É um vício.
Oh, como se diverte! Para ele, destruir uma árvore, um rosto, uma instituição, uma catedral – tanto faz.
O desagradável é quando de repente se retira de algum objeto ou de alguém. É claro que prossegue depois. Mas deixa sempre uma coisa morta...
Franqueza, nessa hora dá um aperto no coração, uma nostalgia!...
Contudo não se deve ligar demasiada importância ao tempo. Ele corre de qualquer maneira.
E é até possível que não exista.
Seu propósito evidente é envelhecer o mundo.
Mas a resposta do mundo é renascer sempre para o tempo.
Aníbal Machado, in Cadernos de João