sexta-feira, 26 de fevereiro de 2016

A iniciação

Fernando tinha forçado a janelinha com a chave de fenda e abrira a porta do Renault. Depois, apagara a luz vermelha do freio e ligara o motor com um fio de arame. Com fita isolante e esparadrapo, pedacinhos negros e pedacinhos brancos, Pancho mudara os números da chapa: o cinco virou três, o oito virou seis, o seis virou nove.
O vento empurrava as ondas violentamente contra o cais e multiplicava o ruído da maré alta por toda a Cidade Velha. Uivou a sirena de um barco; por alguns segundos, vocês ficaram paralisados e com os nervos à flor da pele. O Gato Romero olhou o relógio. Eram duas e meia da manhã – em ponto.
Você não tinha comido nada desde o meio-dia e sentia borboletas no estômago. O Gato explicara que é melhor com a barriga vazia, e que convém também esvaziar os intestinos, porque pode entrar chumbo, e você sabe... O vento, vento de janeiro, soprava quente, como saído da boca de um forno, e todavia um suor gelado grudava a camisa em seu corpo. A sonolência paralisava sua língua e os braços e as pernas, mas não era sonolência de sono. A boca tinha ficado seca, e você sentia uma moleza tensa, uma doçura carregada de eletricidade. Do espelinho do Renault pendia um diabinho de arame, que dançava com o tridente na mão.
Depois, você não reconheceu a própria voz quando escutou-a dizer: “Se mexe, e eu te queimo”, deixando cair como marteladas uma sílaba atrás da outra, nem seu próprio braço quando afundou o cano da Beretta no pescoço do guarda, nem suas próprias pernas quando foram capazes de sustentá-lo sem tremer e de correr sem perceberem que uma delas, a perna esquerda, tinha um furo calibre trinta e oito que atravessava o músculo e jorrava sangue. Você foi o último a sair, esvaziou três pentes de balas antes de se meter no automóvel em movimento e a cada curva tudo caía e levantava e tornava a cair e a levantar, os pneus mordiam as sarjetas, ficavam atrás as fileiras de árvores e as caras dos edifícios e os brilhos dos faróis; arrastados pelo vento, os pedaços do mundo se atropelavam e se confundiam e voavam em rajadas escuras. E só então, quando você ficou enrolado como um novelo, arquejando no banco de trás, descobriu, extenuado e sem assombro, que a primeira vez da violência é como a primeira vez em que se faz o amor.
Eduardo Galeano, in Vagamundo

Nenhum comentário:

Postar um comentário