terça-feira, 29 de setembro de 2015

Paisagem perdida

A casa da fazenda do velho Manuel Querino era separada do chiqueiro das cabras por uma porteirinha que dava para o cercado da roça. Vicência Querino abaixou-se para passar entre os dois paus da porteira e ficou, curvada, com um pé descansando no pau e outro mal apoiado no chão, escutando um aboio longínquo que se perdia no meio do mato.
De quem seria aquele aboio sonoro, saudoso, tão diferente de todos os aboios já decorados pelos seus ouvidos espertos? De Manuelzinho, seu irmão? De Tiúba, o vaqueiro das Lavras? De Quincas, de Leonilo, de João de Souza? Não, aquele aboio não saía de nenhuma boca sua conhecida. Era com certeza de alguém estranho, conduzindo alguma rês rebelde pelas terras do pai dela. Algum vaqueiro das bandas de lá do Grotão ou do Toquinho, do lado de lá daquelas serras azuis por onde ela nunca andara. Aquelas serras azuladas, distantes, no meio das quais se distinguia uma pequenina mancha branca que diziam ser a igreja de Buíque. E como seriam aqueles lugares? Que haveria por lá de estranho para os seus olhos tão ignorantes e ao mesmo tempo tão ansiosos de novas paisagens?
O aboio foi despertando o pensamento de Vicência e ela aos poucos se perdia com ele, como de hábito, em indagações curiosas—como seria isto, como seria aquilo. Esquecida, a perna curvada adormecia sobre o pau da porteira. O formigueiro dominava o pé, já inerte, e subia perna acima, como se lhe dessem um número sem conta de espetadelas de alfinete. Vicência fez uma careta, puxou a perna devagarinho e saiu manquejando, fazendo uma cara de riso enjoado, praguejando sem raiva:
Diabo leve essa dormência! Estou que nem velha de juntas travadas!
Adiante Vicência estacou, dando palmadinhas na perna. E enquanto soltava pragas tolas contra a dormência, o aboio se aproximava, varando a caatinga. Às vezes, quando o vento mudava de direção, o aboio chegava aos seus ouvidos como um apito de cigarra, triste como os cantos de fim de tarde. Era antes um gemido do que um canto. Variações de notas sem palavras, sem significação, mas tão expressivas no seu sentido de tristeza e de saudade. E o aboio tristonho vinha vindo pelo meio do mato, ora mais perto, ora mais longe, enchendo de curiosidade os ouvidos espertos de Vicência Querino. Ela ajeitava a mão no ouvido para ouvir melhor; entortava o pescoço, espichava-o; voltava-se para uma direção, para outra e fazia-se perguntas mentais: “De quem será, meu Deus? De quem será essa voz tão bonita?” Apertava os olhos, prendia a respiração, esquecia os outros sentidos para aguçar o do ouvido.
Seria para pressentir, para adivinhar alguma coisa, todo esse interesse? Não. Vicência Querino não ouvia daquele aboio nenhuma nota pela qual a lembrança de outra se despertasse. Aquela curiosidade nascera de repente, sem causas anteriores, simplesmente pelo gosto do desconhecido, do ignorado. Talvez a mesma curiosidade que lhe despertavam as serras azuladas lá distante. Apenas, como via as serras desde que se entendera de gente, e por elas tinha uma estranha curiosidade, ela mesma fantasiava o que de grandioso pudesse haver do lado de lá: fazendas sempre verdes, gado sempre gordo, cavalos bonitos, corredores, e a vida fácil entre vaquejadas alegres e cocos bem cantados.
Uma figura de vaqueiro, apagada, indistinta, entrava a mais nessa fantasia, superando as qualidades de outros vaqueiros, de outros homens seus conhecidos; essa figura era o melhor cavaleiro, o mais corajoso, o mais bonito de todos. Vicência Querino porém não personificava em ninguém conhecido o herói dos seus devaneios de sertaneja de vinte e cinco anos. Era uma figura, um ser existente apenas no seu pensamento sonhador. Por isso o dono daquela voz não lhe despertava a lembrança, mesmo involuntária, de nenhum homem conhecido. Era somente uma voz desconhecida, como lhe eram desconhecidos o herói dos seus sonhos e a vida do lado de lá das serras. No entanto, a curiosidade de Vicência era cada vez maior, à proporção que o canto se aproximava.
Não tardou que várias reses aparecessem correndo no fim do pátio, defronte de casa, tangidas pelo caminho do Vaquejador. Vicência destacou entre elas um boiato de oito arrobas, raposo, de cabeça levantada, espantadiço, incerto na carreira por estranhar talvez as paragens em que pisava. Certamente era aquela rês que o dono da voz buscava no meio do gado. Os chocalhos das vacas despertaram a atenção do velho Manuel Querino. O velho veio então ao alpendre, acompanhado da Anália, a filha mais nova. Olharam o gado. Comentaram.
Dois homens a pé, de varas na mão, arrebanhavam as reses. Atrás, meio envolvida na poeira, distinguia-se a figura dum cavaleiro. Visto de longe, esfumado no pó, lembrava o vulto de um toco queimado. As reses estacaram, cercadas. O cavaleiro chegou as esporas no cavalo, contornou de longe o rebanho e dirigiu-se a galope para a casa do velho Manuel Querino.
Vicência, encostada num esteio do alpendre, observava a figura do desconhecido, falando com o velho. Seus ouvidos guardaram estas palavras: “Como vai você, João Toté?” “Que rês é essa?” “De que morreu a finada?” Guardara somente algumas perguntas do pai, feitas aos berros, porque ele era surdo, mas as respostas do desconhecido lhe escaparam. Ouvira uma ou outra articulação, sem sentido, lembrando o mesmo timbre do aboio.
Quando o vaqueiro se dirigia ao rebanho, o velho Querino gritou para a filha:
Abre ali a porteira do curral, Vicência, que Toté vai prender o gado pra botar um cambão no boiato!
Vicência correu, satisfeita por prestar aquele serviço. Abriu a porteira e trepou-se na cerca, um pouco afastada para não espantar o gado.
João Toté vinha atrás do rebanho, dirigindo o cavalo para um lado, para outro, cercando-o. Usava paletó preto, camisa preta e perneiras de couro. Batendo com o chapéu de couro nas perneiras, a cabeleira preta, basta, certinha atrás como a de uma imagem de santo, sacudia-se toda na cadência das pancadas. Vicência achava-a bonita.
As primeiras reses transpuseram a porteira e João Toté levou a mão à boca, ajudando o aboio. Assim de perto o aboiar do vaqueiro ainda era mais bonito. As notas não se perdiam, não se destorciam pelo vento. Eram firmes, sonoras, tristonhas.
Vicência Querino não tirava os olhos de cima dele. Além da cabeleira achava bonitos os olhos pretos, grandes; o pescoço bem feito, folgado na camisa aberta; o jeito mole do corpo em cima do cavalo fogoso, o bigodinho descaído nos cantos da boca.
Com o gado preso, o velho Querino aproximou-se, gritando:
Reimosinho, o malvado do boiato! E a pinta é boa, Toté! É pra carro?
João Toté explicou que o boiato era manhoso, tendente a embrabecer, arredio de curral e de gado manso. Era para vender em S. Caetano, porque dali sempre para pior. Para touro não servia. Procedia de vaca cachecha e pingadeira de leite. E nove arrobinhas por cento e oitenta, em tempos daqueles, eram na verdade um bom negócio.
E se não fosse o seu curral, “seu” Querino,—disse João Toté, terminando a história do boi,—o garrote valentão me deixava no mato. Fizemos até um estragozinho num descampado que tem aqui embaixo, perto já do seu cercado. O bichinho corre! Mas corre mais este castanho que o senhor está vendo!—e alisou as crinas do cavalo, agradando-o.
Deram um dedo de prosa sobre outros assuntos. Por fim João Toté pediu:
Agora, enquanto Severiano laça o bicho, queria que vosmecê me emprestasse uma foice. É pra cortar um cambãozinho pro malcriado.
Pegue se aqui com essa menina—respondeu o velho apontando Vicência,— que é o homem da casa!
E explicou porque ela era o homem, fazendo cara de riso:
Esta, a mais nova, é achacada que nem a mãe. Os meus dois homens, Quinca e Manuelzinho, são plantação de fim de safra: não dão pra nada! Se essa não amofinar—insistia, apontando Vicência—é quem vai continuar a raça. Porque o resto, Toté, só tem vista como melancia de beira de riacho: dentro é aguada que só miolo de facheiro!
O velho ria-se da própria mangação e João Toté protestou por delicadeza:
É assim o que, “seu” Querino! O galho pode ser torto, mas brota de tronco linheiro. E quem dá valor à madeira é o nome.
O velho voltou-se, ainda rindo, e insistiu:
Não é tanto assim não, Toté! No telhado lá da meia-água tem até sucupira dando cupim!
É porque tem madeira ruim junto dela!
Pode ser!—disse o velho.—Mas eu já não posso cortar madeira nova, estou de dias contados e os dois homens cá de casa só cuidam de caça.
Vicência apresentou-se a João Toté, estirando-lhe a mão, meio acanhada. E indagou, espantando-o com a experiência que tinha das coisas práticas, dos serviços de homem, como insinuara o velho:
Se o boiato é brabo mesmo, o melhor é um cambão novo. A gente tem aí alguns deles, mas secos, umas penas. O senhor não acha melhor cortar um novo, mais pesado porque a madeira é verde?
João Toté aceitou esse conselho, dando razão à moça, mas teria aceito qualquer outro por acanhamento. Vicência correu à casa, apanhou a foice e amolou-a às pressas na pedra. Depois convidou o vaqueiro:
O senhor pode me acompanhar. Aqui bem detrás da casa tem uma imburana boa.
Leia o final surpreendente desse belo conto do pernambucano Luís Jardim aqui.

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