sexta-feira, 25 de setembro de 2015

Coração de porco

Era muito cedo. Antes da hora do sol — momento regular, encantador, charmoso. A mulher bateu à porta certa de que fossem abrir.
O velho.
O velho aproximou-se lentamente, chinelos inaugurando o chão da manhã e, sorriso no rosto, espreitou. Usava uma face tranquila, embora nos lábios se descortinassem pregas de frio. Entre, minha filha, entre. Como se o velho tivesse o dom de perceber ao que vinham as pessoas.
Havia, na mulher, uma expressão de estranheza; mais que frio, incômodo. Precisava ela, certamente, de um chá quente, e que alguém comunicasse com ela numa língua inteligível. O velho não se permitia mais do que três tentativas antes de acertar. Foi ao russo, visitou o castelhano, arranhou o suaíli e resignou-se, já encabulado, ao inglês. Mas ela — passiva, desentendedora. O velho destapou o bule e sorriu. Mais do que satisfação, dentro dele burilava já a sensação de ter encontrado mais um membro do clã: salve!, disse-lhe, no seu impecável latim.
Tanta alegria — recordar é crescer! —, o velho nem estranhou as horas, nem perguntou o nome. Num tom franco, indagou: você leu Kazantzakis?, ela ainda espantando o frio, o odor de animais vários, o papagaio que acordava declamando sonetos e, lá mais atrás do mundo, dois porcos que, guinchando, conversavam. Li a obra toda, incluindo notas dispersas e cartas a amigos, respondeu.
Parados, deambulavam entre olhares mútuos — a divisão complacente de um momento, a alegria mansa de estar. O mundo era uma aurora estreando-se nos seus corações, uma alforreca sem destino definido e sem corrente para agradar. Se havia lugar estranho no mundo, era aquela pequena loja escondida nas arquiteturas mais góticas da Escandinávia.
— Então talvez se lembre da discreta tirada do autor grego — olhou-a com firmeza.
— Sobre?
— Sobre aquilo que a traz cá — o velho mexia na chávena com delicadeza.
— O coração — ela, sempre em latim.
— “Se o coração do homem não transborda de amor ou de cólera...” — ele esperou.
— “Nada se faz no mundo” — ela sorriu. Terminou o chá, levantou-se. — Nikos Kazantzakis, O Cristo recrucificado.
O velho acompanhou-a na poética digressão à janela. O sol quase queria chegar, afastar as nuvens com prepotência e, mais do que iluminar a Terra, penetrar nos corações humanos. Como se numa missão divina.
— Cara senhora... — começou o velho, mais sério. — Não vou deixá-la cometer o mesmo erro que os outros.
Ela voltou-se repentina, séria também:
— Os outros?
— Os outros todos que, antes de si, me apareceram na loja procurando novos corações. Esgotaram os estoques, fizeram os mais incríveis pedidos sem nunca, mas nunca, me quererem ter ouvido acerca das propriedades dos corações dos animais.
— Mas veio cá muita gente?
— Oh, sim, gente suficiente para que eu tivesse de mandar vir animais de África, das Américas... — pensativo. — Mas, diga-me: por que precisa você de um coração novo?
— Para dizer a verdade... — tocou-lhe no ombro — para lhe explicar isso, teríamos que divagar por conceitos filosóficos inacessíveis ao latim de ambos. Digamos que a solidão mudou-me a cor do coração.
— Entendo, entendo — o velho dirigiu-se ao balcão, retirou alguns papéis. — Venha comigo — e abriu uma pequena porta, como importantes são sempre as portas pequenas.
A mulher suava — no efeito do estranho chá que havia consumido. O velho era dado a estes comportamentos: adiantar-se em anestesias, suavizar cirurgias, pretender adivinhar os desejos dos clientes. A mulher suava — passando por estreitos corredores coloridos, por aves raras que não gritavam (era cedo), por galinhas-do-mato escuras ou rosadas, por porcos-espinhos adormecidos, cobras, ratos brancos e, no fim, os porcos. Animal muitíssimo asseado, explicou o velho. Já deitada na cama de dossel, antes de se iniciar o processo de hipnose, ela, suando, sorriu para o velho: o coração de um porco...?
E adormeceu.
Quando retornou das abstinências do hipnotismo encontrava-se já à mesa, tonta mas com uma sensação de aconchego no peito. Era, no fundo, o que trazia todas as pessoas àquele local: a magia de renovar o órgão primeiro, o bombeador de sensações, a casa mais íntima de um ser humano.
— Não fale. Poupe as forças — disse o velho.
Quando, no fim da refeição, voltou a fazer um chá, começou:
— Leve isto consigo — entregou-lhe um pequeno aglomerado de folhas, escrito à mão num cuidadoso latim. — Vai servir-lhe para ser feliz!
— E o que é? — a mulher, sensível, curiosa.
— Todos os meus apontamentos sobre a sensibilidade dos porcos. O que é dizer: você é a primeira pessoa a levar um coração com o respectivo manual de felicidade.
— Por que faz isso por mim?
O velho sorveu as últimas gotas de chá e respirou fundo, evitando as lágrimas. Pegou na mão da mulher — gesto simples, inocente, mas brutalmente humano (que só os velhos sabem manusear) — e murmurou a sua frase última:
— Acima de tudo, pela brandura no seu olhar — fez uma longa pausa. — Você é a minha última cliente. A partir de hoje a loja está fechada!
Ondjaki, in E se amanhã o medo

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