quinta-feira, 30 de julho de 2015

Às expensas de outrem

O ateniense Dêmades condenou um homem da sua cidade que tinha por ofício vender as coisas necessárias para os enterros, sob a alegação de que exigia um lucro excessivo e esse lucro não lhe podia vir sem a morte de muitas pessoas. Tal julgamento parece estar mal pronunciado, na medida em que não se obtém benefício algum a não ser com prejuízo de outrem, e que dessa maneira seria preciso condenar toda a espécie de ganho.
O mercador só faz bem os seus negócios por causa da devassidão dos jovens; o lavrador, pela carestia dos cereais; o arquitecto, pela ruína das casas; os oficiais de justiça, pelos processos e contendas dos homens; mesmo as honras e a atividade dos ministros da religião provêm da nossa morte e dos nossos vícios. Nenhum médico se alegra com a saúde mesmo dos seus amigos, diz o antigo cômico grego, nem o soldado com a paz da sua cidade; e assim sucessivamente. E o que é pior: cada um sonde dentro de si mesmo, e descobrirá que a maioria dos nossos desejos íntimos nascem e alimentam-se às expensas de outrem.
Considerando isso, veio-me à mente que nisso a natureza não contradiz a sua organização geral, pois os naturalistas afirmam que o nascimento, desenvolvimento e aumento de cada coisa são a alteração e degeneração de uma outra, conforme afirma Lucrécio: Pois quando algo se transforma e muda de natureza, imediatamente há morte no objeto que existia antes.”
Michel de Montaigne, in Ensaios

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