segunda-feira, 25 de maio de 2015

A medalhança casuística


- Bom-dia, seu Dirceu - Odorico cumprimenta o secretário que lê um jornal de Salvador em posição de absoluto relaxamento, os pés sobre a mesa.
- Bom-dia, coronel - Dirceu se assusta e se compõe, rápido. 
- Me perdoe a franqueza, seu Dirceu, mas o senhor dá uma imagem bastantemente avacalhante do funcionalismo municipal.
- O senhor me desculpe - Dirceu tenta se justificar, corre atrás de Odorico, que entra em seu gabinete, tira o chapéu panamá e o paletó de linho branco, pendura-os no cabide. - Eu tava... tava tendo notícias de Salvador. O senhor sempre pede pra ler e marcar o que interessa.
- Não me refiro ao posturamento intelectual – esclarece Odorico - mas ao descomposturamento corporal. O seu pode ser condizente com um borboletista praticante, mas não é apropriado a um secretário de administração.
- É que eu ta... tava perturbado, não sabe? - Dirceu gagueja, deixa cair o jornal, apanha. - Não vi o senhor entrar.
- Perturbado com quê? - Odorico senta-se à sua mesa de trabalho, mexe nos papéis. - Alguma borboleta pousou na sua sorte?
- Não... Com essa notícia aí. - Dirceu coloca o jornal sobre a mesa, aponta a manchetinha.
- Morreu Asclepíades Tanajura. - Odorico procura lembrar-se. - Asclepíades Tanajura…
- O poeta! Morreu em Salvador.
- É, em Salvador morre de tudo! - lamenta-se Odorico. lembrando-se do cemitério que ainda não conseguiu inaugurar.
- Até poeta. Somentemente aqui em Sucupira é que existe essa crise defuntória que me leva ao desespero.
- Mas ele nasceu aqui.
- Quem?
- O poeta. Asclepíades Tanajura era sucupirano, sabia não? Só que vivia em Salvador há mais de trinta anos.
- Tem certeza?
- Taí na gazeta. É autor de um poema épico chamado "Os Sucupiríadas", em versos alexandrinos. Tanto que era membro da Academia Sucupirana de Letras.
- Mas por que o senhor não me disse isso logo? - Odorico levanta-se, subitamente interessado no passamento do bardo conterrâneo. - Quem sabe a gente pode trazer o corpo pra enterrar aqui? Assim se inaugurava o cemitério. E ia ser uma inauguração de fazer inveja a qualquer campo santo. Até mesmo ao Cemitério de Arlington, onde repousam os grandes estadistas americanos. Ou Les Invalides, onde está enterrado Napoleão.
Nenhum deles foi inaugurado com um poeta.
- E um poeta imortal - ajunta Dirceu, deixando-se empolgar pela ideia do prefeito. - Vamos telefonar à viúva. - Odorico pega o telefone, mas pára, reflete. - Ou quem sabe era melhor eu ir a Salvador?
- E o endereço?
- Alguém deve saber. Ele era da Academia Sucupirana…
- O vigário também é - lembra Dirceu. - E pode, inclusive, ajudar a convencer a viúva.
- Olha lá o vigário! - Dirceu aponta para o alto de um andaime armado em frente à igreja.
- Mas é ele mesmo? - Odorico estranha, vendo o padre, de bermudas, pintando a fachada da igreja, o sacristão embaixo, segurando a escada. - Deu pra andar desuniformizado.
- Bom-dia, coronel - o vigário cumprimenta o prefeito do alto do andaime. - Quer falar comigo?
- Queria... se Vossa Reverendíssima puder aterrizar um instante.
- Mas é o senhor que tá pintando a igreja? - Dirceu estranha.
- Que jeito, seu Dirceu? - O Padre Honório desce a escada, ajudado pelo sacristão Tião Moleza. - Não há dinheiro pra pagar pintores.
- Oxente, mas por que Vossa Reverendíssima não me falou que carecia de um adjutório? - intervém Odorico.
- Há anos que espero por esse adjutório prometido pelo coronel.
- Bom... - Odorico pigarreia - vamos botar de lado esses entretantos e passar logo aos finalmentes. Tenho assunto de urgência urgentíssima a tratar com o senhor.
- Vamos lá pra sacristia. - O padre atravessa a nave da igreja, seguido por Odorico e Dirceu, entra na sacristia, lava as mãos sujas de cal, enquanto o prefeito expõe o problema.
- Daí nos ocorreu que o vigário podia interceder…
- Mas o que é que o coronel deseja de mim? Que eu telefone à viúva e peça pra trazer o corpo do poeta pra Sucupira?
- É - confirma Odorico - não apenasmente como vigário, mas talqualmente como imortal, colega dele na Academia Sucupirana de Letras.
- A Prefeitura pagaria tudo, todas as despesas – reforça Dirceu.
- E com ele inauguraríamos não somentemente o cemitério municipal, como o mausoléu dos imortais, doado pela Prefeitura, onde prafrentemente seriam sepultados todos os membros da Academia Sucupirana de Letras.
- Que beleza - Dirceu vibra, emocionado.
- É, uma beleza - repete o vigário, sem entusiasmo - se o corpo do poeta Asclepíades Tanajura já não tivesse sido sepultado ontem.
- Oxente! Como assim? - Odorico se espanta e mostra o jornal. - Tá aqui na gazeta. Será sepultado hoje, às 16 horas…
- Esse jornal é de ontem, coronel.
- De ontem? - Odorico confere a data, vê que o vigário tem razão, fuzila Dirceu com um olhar, mas ainda insiste. - Será que não se podia exumar o corpo?
- Daqui a alguns anos, é possível. Assim, logo em seguida ao sepultamento, acho difícil. De qualquer maneira, daqui a pouco, na Academia Sucupirana de Letras, será realizada uma sessão de saudade, em homenagem póstuma ao poeta. Por que o prefeito não comparece?
- E finalmente, epilogando esta breve e singela elegia, este preito de saudade ao inspirado bardo sucupirano, ao genial autor das Sucupiríadas, poema épico que nada fica a dever à Odisseia ou à Ilíada de Homero - Perivaldo de Assis, presidente da Academia, enfia os dedos em pente na cabeleira branca, deixa cair algumas caspas sobre o fardão verde-amarelecido, percebe que o vice-presidente, Honestino Junqueira, cochila a seu lado, toma fôlego e continua - declaro vaga a cadeira número 17, que tem como patrono José do Patrocínio, ficando abertas as inscrições por dois meses, como reza o regulamento.
- Sem açúcar, sem açúcar - diz Honestino Junqueira, despertando com uma cotovelada de Lulu Gouveia e com os aplausos dos imortais e dos convidados que lotam o salão.
- E em nome da Academia Sucupirana de Letras - Perivaldo lança um olhar enraivecido a Honestino e a outros imortais que também cochilavam nas cadeiras de espaldar alto - agradeço a presença de todos, notadamente do excelentíssimo sr. Prefeito.
- Obrigado... Muitissimamente obrigado. - Odorico levanta-se, agradece os aplausos acadêmicos que crescem de intensidade com o reforço entusiasta das meninas Cajazeiras e de Dirceu Borboleta, nota que Lulu Gouveia não aplaude e o vigário o faz com muita discrição. - Como diziam os romanos quando falavam latim, ab imo péctore, do fundo do coração. Mas além de agradecer, queria, entrementemente, prestar uma homenagem particular ao saudoso poeta que ora pranteamos. E,  data venia, não vejo homenagem mais superlativa do que me declarar, neste momento, candidato à sua vaga, a gloriosa cadeira 17, que tem como patrono o grande José do Patrocínio.
- Ele é candidato! Ele é candidato! - Juju Cajazeira solta gritinhos histéricos, Dó, Zuzinha e Dirceu Borboleta levantam-se, acompanhando seu entusiasmo, a decisão do coronel caindo como uma bomba no plenário, Odorico agradecendo,sorridente.
- Ad imortalitatem - Odorico estufa o peito, estende o braço, num gesto castro-alvino. - Ad imortalitatem!
Dias, Gomes, in O bem amado: Sucupira, Ame-a ou deixe-a

Um comentário:

  1. Genial, épica, inesquecível... essa novela foi talvez a melhor já produzida neste país noveleiro

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