terça-feira, 28 de abril de 2015

Mais de vinte

Quentura do crânio rodete. E esses bichos batendo na cara dum cristão. Me aposento-me. Uma casa em Japaratuba, que é lugar fresco e assossegado, junto do rio Japaratuba, que o único defeito é nascer lá naquelas brenhas de Muribeca, hem Amaro? E fico encostado, comendo caranguejo. Assino a orelha dum par de cabras de leite e fico lá encostado, jogando gamão. Doce de leite, hum? Chu. Vida mansa, não sabe vosmecê. E eu de vinte mortes nas costas. Mais de vinte. Olhando para mim, não se diz. Mas se eu não sou um homem despachado ainda estava lá no sertão sem nome, mastigando semente de mucunã, magro como o filho do cão, dois trastes como possuídos, uma ruma de filhos, um tico de comida por semana e um cavalo mofino para buscar as tresmalhadas de qualquer dono. Espiando o dia de São José, aquelas secas espóticas, nuncão. Aquela chuva que antes de chegar embaixo já está subindo de novo, de tão queimosa a excomungada da terra, lembra labaredas. Japaratuba é menos agreste. Compro um binoclo, na tenção de olhar as paragens. Gosto de binoclos. Mas de vinte nas costas, veja vosmecê, é como mulher, não se consegue lembrar todas. A primeira é mais difícil, mas depois a gente aprende a não olhar a cara para não empatar a obra. De perto demais não é bom. Se agarram-se na gente, puxam a túnica para baixo. Verdade que pouco estou de farda, mas quando estou me aborreço que suje minha farda. Não gosto de estar com uniforme descompleto. Estradinha da moléstia. Não sei, talvez possa ser melhor comprar uma plantação boa, num sítio quieto. Mandioca. Interessante, é venenosa, mas nunca vi ninguém morrer de mandioca, agora todo mundo sabe que é venenosa. Matar de veneno é porcaria. Conheci um cabo que bebeu tatu e se vomitou todo. Morreu feio, lançando arroxeado na cama. O terceiro que morreu na catinga não me lembro o nome. Um com a cara de peru assoberbado, um vermelho. Teve morte demorada. Bicho valente, reagiu de facão, de maneiras que tivemos de encher logo o couro dele. Assim mesmo, a bochecha de Alípio tomou um corte medonho e ficou escancarada como duas folhas soltas. Ferida feia. Preciso comprar brilhantina assim que chegar numa cidade de gente. Quando vou à paisana, o quepe não está para assentar as grenhas. Alípio queria falar, mas não podia, só assoprava com descontrole de vento. Donde se vê que a sede da fala também é parte na bochecha. Pouco sangue, só o bastante para lambuzar mais ou menos o pescoço. Aquilo como duas bandeiras, uma desencontrando da outra. Compro uma brilhantina cheirosa e mando aparar as costeletas. Alípio ainda acertou as tripas do udenista com a baioneta três ou quatro vezes. Maioria dos udenistas custam de morrer, se prende no ar como camaleão. Não ser as mulheres, que morre como qualquer, udenista, pessedista, queremista, intregalista ou comunista. Também não sei muito de mulher. A gota serena, a bexiga da peste. Dá de gancho. Tem quem tome a Saúde da Mulher, para purgar a reima. Sei não. Arde. Até de noite essa poeira vai entrando e suja a camisa de amarelo. Amaro só anda ripado pela estrada, mas com esse caminho de carroça não se pode fazer mais. Vosmecê garanto que não tem pressa. Compro Quina Petróleo Oriental, como o Chefe usa e sai todo busuntado, passeando na rua João Pessoa, de roupa branca e um lenço no bolso e dando aquelas paradas para conversar e explicar a situação e depois sentando para tomar cerveja e comer queijo com um molho preto em cima. Para mim o Chefe campa as mulheres da miuçalha toda, quando quer. É entrar naquela sala e sair galada. Para mim é isso. Quina Petróleo Oriental. Arre. Diabo de mosca. Mosca não se afoga. Menino, eu pegava as moscas e botava numa garrafa dágua, sacudia bem e quando abria lá vem mosca voando que nem esta aí nem vai chegando. Resiste bem. O que me reta é que a gente enxota e ela vem no mesminho lugar que estava quando a gente enxotou antes.”
João Ubaldo Ribeiro, in Sargento Getúlio

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