sexta-feira, 24 de abril de 2015

Madeira torta, o homem

Os sinais dos tempos não são apenas faustos. Há também muitos infaustos. Aliás, nunca se multiplicaram tanto os profetas de desventuras como hoje em dia: a morte atômica, a segunda morte, como foi chamada, a destruição progressiva e irrefreável das próprias condições de vida nesta terra, o niilismo moral ou a “inversão de todos os valores”. O século (que chegou ao fim) já começou com a ideia do declínio, da decadência, ou, para usar uma metáfora célebre, do crepúsculo. Mas sempre se vai difundindo, sobretudo por sugestão de teorias físicas apenas ouvidas, o uso de uma palavra muito forte: catástrofe. Catástrofe atômica, catástrofe econômica, catástrofe moral. Havíamos nos contentado até ontem com a metáfora kantiana do homem como madeira torta. Em um dos ensaios mais fascinantes do rigorosíssimo crítico da razão, Ideia de uma História Universal de um Ponto de Vista Cosmopolita, Kant perguntou a si mesmo como, de uma madeira torta como a que constitui o homem, podia sair algo inteiramente reto. Mas o próprio Kant acreditava na lenta aproximação ao ideal da retificação através dos “conceitos justos”, “grande experiência” e, sobretudo, “boa vontade”. Da divisão da sociedade, razão pela qual a humanidade continua a ir em direção ao pior, e que ele chamava de terrorista, Kant dizia que “recair no pior não pode ser um estado constantemente duradouro na espécie humana porque, em um determinado grau de regressão, ela destruiria a si mesma”. Mas é exatamente a imagem dessa corrida para a autodestruição que aflora nas visões catastróficas de hoje. Segundo um dos mais impávidos e melancólicos defensores da concepção terrorista da história, o homem é um “animal errado”, não culpado, atenção, porque essa é uma velha história que conhecemos bem, culpado, porém redimível e, talvez, sem que ele mesmo saiba, já redimido, mas errado. É possível retificar uma madeira torta. Porém, parece que o erro do qual fala esse amaríssimo intérprete do nosso tempo é incorrigível.”

Norberto Bobbio, A era dos direitos

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