terça-feira, 21 de abril de 2015

Gota serena


A gota serena é assim, não é fixe. Deixar, se transforma-se em gancho e se degenera em outras mazelas, de sorte que é se precatar contra mulheres de viagem. Primeiro preceito. De Paulo Afonso até lá, um esticão, inda mais de noite nessas condições. Estrada de carroça, peste. Temos Canindé de São Francisco e Monte Alegre de Sergipe e Nossa Senhora da Glória e Nossa Senhora das Dores e Siriri e Capela e outros mundãos, sei quantos. Propriá e Maruim, já viu, poeiras e caminhãos algodoados, a secura fria. E sertão do brabo: favelas e cansançãos, tudo ardiloso, quipás por baixo, um inferno. Plantas e mulheres reimosas, possibilitando chagas, bichos de muita aleiva, potós, lacraias, piolhos de cobra, veja. Matei uns três infelizes assim, pelo cima de uns quipás, sendo que um chegou devagar no chão, receando os espinhos sem dúvida. Assunte se quem vai morrer se incomoda com conforto. Fosse dado a sangria, terminava o vivente no ferro, porém faz um barulho esquisito e não é asseado por causo de todo aquele esguincho que sai.
E dessa forma acertei um disparo no cachaço, procurando atitude para não esperdiçar munição. Inda xinguei por me obrigar a caçar pelessas catingas, arremetido naquela soaeira, estropeando as reiúnas novas naquelas catanduvas embaracentas. Só se vê cabeça de frade, macambira, catingueira e urubu. Nem ouviu mais o xingamento, amunhecou e esfriou. Trabalheira ordinária. Ia me fazer chegar aonde? Itapicuru? Vitória da Conquista? Sei lá. Não tem limites para a frouxidão que faz o homem dar nas canelas e botar a alma no mundo, correndo do destino. A hora de cada um é a hora de cada um. O bexiguento lá estrebuchado, agora ancho nos espinhos, como se o chão fosse forrado de barriguda. Que diferença faz? Quem já viu o derradeiro tiro sabe como é. Aquela sacudida no corpo, uma estremidela de uma vez só. Depois os urubus, que a tarefa aí já não é mais de punição, é de limpeza. Urubu é o asseio dos matos, enxerga no minuto que alguém deixa de andar naqueles agrestes e fica rodeando como um esprito. Arrodeia assim, estralando o bico e ufeúfe nas asas, aqueles pulos penados, almospenados. Vai e revai e vai e vem. De luto. Deve ter um bafo notável. Sabe-se que o urubu novo nasce branco e depois empretece e se ver um homem vomita de nojo, dá engüios. Nós temos nojo deles, e ele tem nojo de nós. Naqueles agrestes, quando todos caldeirãos se acham secos e as arribaçãos escavocam a lama no caminho do rio, dá um silêncio importante. Só o mato que bate castanhola, assim vez por outra. Como gaiteiras, só que nesta feita no terreno sem mangues. Não existe bom que não tenha medo dos urubus, porque a fome traz ousadia no bicho e ele achega-se perto, pulando pelo chão, de asa aberta e bicão exalando. É o dono do mundo. A língua deles se vê e se ouve o barulho dos pés, naquele passo arredondado que ele dá. E pode esperar que o homem vai ser comido numas beliscadas puxantes, aos arranques: o bicho estica para trás, arrasta pelo chão e engole com a cabeça para cima, tudo muito calado e despachado. O segundo cabrunquento se finou quase que do mesmo jeito, só mais conformado, fazendo rezas. Dizem que já estava mordido de barbeiro mesmo, morria assim ou assado qualquer dia, mas parecia cevado e sustante. Enfim, quem come jaca e bebe qualquer espécie de cachaça estupora, mas nas horas antes parece ótimo, até chegar o estuporamento. Dizem, nunca vi. Porque na minha frente nunca permiti um cristão misturar indevidos, beber água depois de chupar cana, comer coco tendo tosse. A morte morrida enfeia e dá sentimentos porque é devagar, não é pacífico. Sempre digo, nas festas de rua, quando o povo se junta feito besta de um lado para o outro: olhe as galinhas de Deus. Porque é igual às galinhas do quintal. Quando menas ela espera, ali galinhando no copiar, ali ciscando bendodela com aquela cara de galinha, o dono pega uma, raspa o pescoço bem raspado e sangra num prato fundo, com um vinagrinho por baixo. Quando menas a gente espera, Deus pega um e torce o pescoço e não tem chororô. Mesma coisa. Meu São Lázeo, meu São Ciprião não adianta nada, que o santo não tem prevalência no destino. A criatura se desmancha-se em elementos.”
João Ubaldo Ribeiro, in Sargento Getúlio

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